segunda-feira, 27 de maio de 2019

A hierarquia e a necessidade de uma 'cultura da vulnerabilidade'


A fim de chegar a um sacerdócio servidor ou a um episcopado servidor, devemos atravessar e viver uma cultura da vulnerabilidade.


A vulnerabilidade, propriamente entendida, é precisamente o que os membros da hierarquia católica romana precisam adotar como força.
A vulnerabilidade, propriamente entendida, é precisamente o que os membros da hierarquia católica romana precisam adotar como força. (Reprodução/ Pixabay)
Por Tom Roberts*
Hierarquia e vulnerabilidade são ideias aparentemente incompatíveis. A hierarquia (no imaginário católico) indica status, poder, privilégio e a capacidade de controle. A vulnerabilidade, por outro lado, indica fraqueza, uma falha de algum tipo. É algo a ser evitado.
Mas a vulnerabilidade, propriamente entendida, é precisamente o que os membros da hierarquia católica romana precisam adotar como força, argumenta o Pe. James Keenan, teólogo jesuíta. Se há algo que deve ser entendido como um elemento interior essencial no cerne da nossa humanidade, cuja ausência está no cerne da crise dos abusos sexuais, esse algo é a cultura da vulnerabilidade, que a hierarquia deve desenvolver.
Keenan, professor da cátedra Canisius e diretor do Instituto Jesuíta do Boston College, está desenvolvendo uma reflexão importante e fascinante sobre a crise dos abusos, elevando a discussão sobre cultura clerical e hierárquica para muito além das mudanças na lei, nos protocolos e na estrutura institucional que o escândalo forçou em relação à Igreja. Por isso, vou me ater a um assunto nesta semana, com conexões com colunas anteriores sobre o mesmo tema e com a esperança de que a discussão continue no futuro.
Há dois meses, em um trecho desta coluna, eu fiz uma extensa referência a um artigo perspicaz do Pe. Mark Slatter, professor associado de Ética Teológica da St. Paul University, em Ottawa, Ontário, sobre a cultura clerical. Ele descrevia a cultura em geral como “uma rede de sentido e valor pessoal”. No mundo clerical, isso significa uma psicologia que “engendra teias de parentesco entre padres, bispos e grupos de leigos, bispos e cardeais, leigos católicos ricos e think tanks igualmente dispostos”.
Keenan leu e ficou particularmente tocado com a frase de Slatter de que “a cultura hierárquica é a cenoura de ouro para aqueles que estejam predispostos às suas seduções”. Ele estava procurando pela palavra para expressar esse nível da cultura que era diferente do clericalismo em sua formação e privilégio. Quando ele viu o uso por parte de Slatter da “cultura hierárquica”, ele pensou: “É isso. Então, eu me sentei e escrevi esta carta para você”, ele disse em uma recente conversa por telefone de Roma, onde está lecionando neste semestre na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Nessa carta, em parte, ele disse: “O hierarquismo é aquela cultura precisamente no centro do mais recente escândalo de abuso sexual. (...) A cultura hierárquica tem um poder maior e capacidades maiores de estabelecer rede do que a cultura clerical. Precisamos, então, distinguir as duas, não porque o clericalismo não seja pernicioso, ele o é, mas porque temos que entender melhor a natureza viciosa da cultura mais isolada e protegida do que a do clero e certamente mais complexa, insidiosa e dirigida do que conhecemos ou reconhecemos”.
Isolar a cultura hierárquica, disse ele em nossa conversa recente, “desloca a pauta para uma resolução mais criativa e mais bem-sucedida das coisas”.
Simultaneamente, ele estava ponderando sobre a possibilidade de enfatizar a vulnerabilidade como uma questão central na resolução da crise dos abusos. A ideia surgiu durante seu trabalho com o Pe. Hans Zollner, um colega jesuíta, reconhecido especialista no combate aos abusos sexuais e chefe do Centro para a Proteção dos Menores da Universidade Gregoriana. Na época, Keenan estava desenvolvendo uma abordagem à ética sexual.
“Eu acho que a razão pela qual estamos tão preocupados com a sexualidade é porque é aí, nesses relacionamentos, que somos mais vulneráveis”, disse ele na recente entrevista por telefone. “Como adultos, as pessoas procuram isso, serem vulneráveis, e serem vulneráveis mutuamente. Eu pensei que a vulnerabilidade era algo a se refletir e, quando comecei a refletir sobre a vulnerabilidade – e li cada vez mais a respeito –, comecei a perceber ainda mais que ela tinha uma conotação mais ampla do que simplesmente a ética sexual”.
Essas duas ideias – a cultura distinta da hierarquia e o conceito de vulnerabilidade – se uniram em um artigo que ele publicou a pedido do arcebispo Charles Scicluna aos seus padres na Arquidiocese de Malta. Foi um convite muito desafiador. Scicluna é aquele raro clérigo que é amplamente respeitado pelo seu trabalho, como uma pessoa de referência para o Vaticano na organização da questão dos abusos sexuais.
Keenan cita o trabalho do teólogo moral irlandês Pe. Enda McDonagh, que desenvolveu uma teologia da vulnerabilidade em seu livro “Vulnerable to the Holy: In Faith, Morality and Art”; a filósofa estadunidense Judith Butler; e a psicanalista e teórica feminista Jessica Benjamin. Keenan argumenta que a vulnerabilidade não é “um passivo”, um encargo, mas sim “algo que estabelece para nós, como seres humanos, a possibilidade de sermos relacionais e, portanto, morais”.
“Muitas pessoas acham que a vulnerabilidade é um passivo”, disse ele no artigo, “porque a confundem com a precariedade.”
Para ilustrar esse ponto, Keenan usa duas parábolas: o filho pródigo e o bom samaritano.
Sobre o primeiro, ele escreve: “Enquanto o começo da história se concentra na precariedade do irmão mais novo, o centro da parábola se concentra no irmão vulnerável, naquele que o Pai reconhece como seu filho à distância, abraça-o, reincorpora-o e trabalha para restaurar tudo o que era instável, ameaçado, exposto e comprometido. O mesmo Pai permanece vulnerável ao seu filho mais velho, que não sofre realmente de precariedade, mas sim de ressentimento. A estabilidade na história é o pai vulnerável”.
Na parábola do bom samaritano, escreve Keenan, Jesus responde à pergunta “Quem é o meu próximo?” de uma maneira surpreendente. No início da história, somos levados a pensar que a resposta à pergunta “é o homem ferido à margem da estrada, isto é, o precário. Mas, no fim da história, não estamos mais procurando o próximo como o precário, mas sim para o vulnerável que está agindo. O escriba responde corretamente que o próximo é quem demonstra misericórdia”.
A parábola, então, escreve Keenan, “é sobre o escândalo da nossa redenção, não sobre quão maus nós somos, mas sim sobre quão vulnerável Deus é em Jesus Cristo”.
Ele encerra com a pergunta: “Por que não poderíamos desenvolver uma eclesiologia baseada na vulnerabilidade de risco de Deus? Exatamente agora, enquanto tentamos reconstruir a nossa Igreja, não deveríamos olhar precisamente para a vulnerabilidade, uma realidade que negligenciamos enquanto nossos bispos se tornaram surdos aos pais vulneráveis, às crianças vulneráveis e aos adultos vulneráveis que foram terrivelmente violados?”.
Os exemplos da vulnerabilidade de Jesus são abundantes, dentre eles, não por último, o exemplo que ele deu na Última Ceia, quando “abandonou suas vestes e lavou os pés dos seus discípulos, transmitindo a própria vulnerabilidade que ele demonstrou na sua paixão e morte”, escreve Keenan.
Como podemos formar o clero e especialmente o episcopado – cujos membros são em grande parte treinados, como aponta Keenan, em um estilo bastante distinto de outros cleros – em que a ênfase da formação “não esteja no domínio, mas na vulnerabilidade? Como podemos estar com os leigos e em particular com as mulheres?” E será que o clero, assim vulnerável, está atento “àqueles cuja vulnerabilidade tem sido negligenciada há muito tempo ou cuja precariedade está agora em maior risco?”.
A vulnerabilidade não é um meio para preservar a hierarquia. “A fim de chegar a um sacerdócio servidor ou a um episcopado servidor, devemos atravessar e viver uma cultura da vulnerabilidade”, escreve ele. “Há uma profunda ironia graciosa nisso: pois é precisamente a vulnerabilidade que os nossos clérigos e hierarcas ignoraram em todo esse escândalo.”
No fim do seu artigo, ele observa: “Nós, padres e bispos, realmente tomamos uma ‘surra’: todos têm um programa. Um julgamento, uma reivindicação, uma estratégia para nós”. Mas, por trás de cada crítica, ele vê “uma esperança de que a nossa defensividade e a nossa guarda baixem, e nos tornemos o que realmente somos, vulneráveis”.
“Se deixarmos que a vulnerabilidade do nosso Deus entre nos nossos seminários e nas nossas cúrias, talvez possamos descartar algumas daquelas seduções que já sabemos que são tão banais quanto comprometedoras”, disse.
Talvez.
Esse é o tipo de questão essencial agora, naquela que Keenan descreve como a terceira fase da crise dos abusos, aquela em que, finalmente, as culturas clerical e hierárquica vão para a frente e para o centro. Ele me disse que continua desenvolvendo as ideias e suas implicações, e nós publicaremos mais quando ele entrar em contato conosco. É um privilégio acolher esse tipo de discussão neste espaço. Fiquem ligados.
IHU/ National Catholic Reporter - Tradução: Moisés Sbardelotto.

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