Na última sexta-feira, 27 de abril, finalmente, o Brasil pôde se reencontrar com Lula.

Disponíveis na internet afora e espalhados por diversas plataformas de compartilhamento de vídeo, multiplicam-se trechos da gravação da entrevista. (Reprodução)
Por Alexis Parrot*
Falo da entrevista concedida pelo ex-presidente à Folha de São Paulo e ao El País. O momento é histórico, porque é a primeira, desde que foi preso em abril do ano passado, condenado provisoriamente no processo do tríplex do Guarujá, dentro do âmbito da Lava Jato.
Sua realização decorre da revogação de decisão do STF, de outubro de 2018, que cassou o direito de Lula de dar entrevistas.
Disponíveis na internet afora e espalhados por diversas plataformas de compartilhamento de vídeo, multiplicam-se trechos da gravação da entrevista, acompanhados de comentários e reviews de especialistas, jornalistas, usuários das redes sociais e pitaqueiros profissionais de plantão.
Entre os opositores, uma das mais virulentas e apelativas reações à entrevista está no canal do youtube do MBL (Movimento Brasil Livre), onde Lula é apresentado como "vagabundo", chamado de "facínora" e "psicopata" e instado a ir "tomar no c*", entre outros momentos de análise política de altíssimo nível - que não causam surpresa, antes reafirmam do que se trata o MBL e de que material são feitos os seus responsáveis.
Ainda que sujeitos ao bombardeio indiscriminado de tolices e agressões que só a internet pode proporcionar, é bom perceber um detalhe muitas vezes esquecido: nem só de infâmia vive a rede. Porque além de edições seletivas pró e contra, além de discursos inflamados de apoio e repúdio, além dos achismos e paixões, está lá também a íntegra da entrevista histórica, sem cortes ou subterfúgios - como não estaria em nenhum telejornal ou canal de TV aberta.
O encontro foi conduzido por dois entrevistadores experimentados. Cada um com propósitos claros e opostos. Se Florestan Fernandes Jr. (o representante do El País, veículo notadamente progressista) por vezes parecia estar levantando a bola para o presidente cortar, a jornalista da Folha, Monica Bergamo, fazia o papel contrário, buscando em vários momentos - sem sucesso - constrangê-lo.
O que, à primeira vista, poderia parecer interesse pelo lado humano do personagem em destaque ("o senhor já pensou que pode ficar preso para sempre?") ou mesmo curiosidade mórbida de site de fofocas (como a insistência em desejar saber se ele mesmo lava as roupas no dia a dia em Curitiba), era, na verdade, estratégia para tentar colar em Lula uma imagem de fracassado, de leniente com a corrupção ou de carta fora do baralho.
Assim como ela, frustrou-se quem queria ver ali um derrotado. Mais magro, porém, nada abatido, Lula estava "bonitão", como ele mesmo confessou estar se sentindo. E, o mais importante, com sangue nos olhos por justiça.
Alternando bom humor com firmeza e veemência, Lula discorreu durante duas horas sobre todos os assuntos propostos com propriedade, sem fugir de nenhum questionamento e com a clareza e carisma de sempre. Falou pelos cotovelos de tudo um pouco e nos relembrou o porquê de até Obama ter dito que ele era "o cara".
Chamou Moro e Dallagnol de mentirosos com todas as letras e disse estar obcecado para provar sua inocência. Botou os pingos nos is sobre qual é a função do BNDES e demonstrou por A mais B que seu governo tinha visão e política externa, o oposto do que vemos hoje no país,"desgovernado" em sua avaliação.
Para aqueles que eternamente cobram uma autocrítica do PT, e só do PT, pelos malfeitos e pecados históricos da classe política brasileira, lembrou que foi justamente o PT que criou os melhores mecanismos de combate à corrupção e todo o ambiente de transparência para a governança - alvo de retrocesso no atual governo -, além de dar liberdade de ação para PF e Ministério Público, de maneira como nenhum outro partido ou governo fez.
Admitiu dois erros: primeiro, o de simplesmente ter ido ao famoso sítio de Atibaia que, apesar de nunca ter sido seu, é pivô de outro processo ao qual responde, já condenado em primeira instância. O segundo erro: não ter feito a regulação dos meios de comunicação enquanto presidente - mais que uma demanda da sociedade, uma necessidade para a democratização da informação no país.
Sobre a corrupção durante seu mandato, reiterou acreditar no princípio de investigação e punição para qualquer um - observados as provas e os autos do processo. Defendeu que condenações não se baseiem simplesmente em manchetes do Jornal Nacional, em capa de revistas ou em fake news.
Apontou a enorme discrepância entre pena e multa determinadas pelos juízes da segunda instância que o condenaram e o colegiado do STJ. A pena caiu em quatro anos e a multa encolheu em valores consideráveis, na casa dos 30 milhões de reais.
(Se alguns juízes erram por mera incompetência; outros, o fazem por descaso. A estes todos, somam-se aqueles que cometem ou ratificam o erro quando guiados por interesses políticos ou pessoais. A principal lição a se tirar da condenação sem provas de Lula e da disparidade de sentenças e multas aplicadas neste caso é a de que juízes erram - por menos que eles próprios gostem de admitir).
Exortou a união da esquerda, elogiou Flavio Dino e Boulos, reconheceu a importância de Haddad, se disse orgulhoso de Dilma e constatou o encolhimento de Marina Silva. Falou que tem pena do que Palocci fez com a própria história e mandou um recado para o Ciro: caso o pedetista queira ir visitá-lo, será recebido com prazer para uma boa conversa.
Cobrou dos militares a demonização do PT e criticou a militarização desenfreada do atual governo. Chamou Bolsonaro e sua turma de "bando de malucos" e se mostrou indignado por Moro, como ministro da Justiça, ter colocado panos quentes na questão, quando perguntado sobre o fuzilamento, cometido por engano pelo exército, do músico Evaldo dos Santos Rosa e sua família no subúrbio carioca.
Para ele, Bolsonaro não gosta de Educação, haja vista os ministros que escolheu para a pasta, assim como não gosta do Meio Ambiente, pelo mesmo motivo. Disse achar inapropriado um presidente brasileiro bater continência para a bandeira americana. Colocou-se à disposição de Paulo Guedes para discutir "como resolver o problema dos pobres sem penalizar os pobres" (e disso ele entende, porque foi o que fez quando presidente).
Sabe a estatura que tem e reconhece o que realizou sem falsa modéstia. Ainda acalenta os mesmos sonhos e acredita que "a solução dos problemas do Brasil está dentro do Brasil". Está doido para botar o pé na estrada, retomar a luta - que é de toda a vida - pela dignidade de todos e estar novamente na companhia do povo. Diz que vai sair da prisão melhor do que entrou.
Fux, o ministro do STF responsável por impedir a realização da entrevista no momento em que foi proposta - e não há outro nome para a determinação que não censura - sabia muito bem o que estava fazendo.
Se Bolsonaro foi eleito por uma facada, uma entrevista de Lula, já preso, divulgada às vésperas do primeiro turno, também poderia mudar os rumos da eleição presidencial.
Em resposta àquela pergunta da Monica Bergamo, se já havia pensado que pode ficar preso para sempre, Lula disse com tranquilidade que não tem problema, que não vai se entregar. E completou: "Quem nasceu em Pernambuco e não morreu de fome até os cinco anos de idade, não se curva a mais nada".
A frase ecoa outro pernambucano, o poeta João Cabral de Melo Neto, quando nos contava que no Sertão, "uma pedra de nascença entranha a alma". Ao assistir à entrevista de Lula, fica a sensação amarga de que trocamos a chance de uma educação pela pedra por meras pedras no meio do caminho.
*Alexis Parrot é diretor de TV, roteirista e jornalista. Escreve sobre televisão às terças-feiras para o DOM TOTAL.
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