terça-feira, 28 de maio de 2019

O Estado de Direito e o desenvolvimento sustentável

Nesta visão do mundo, os seres humanos são o elemento central e nossa liberdade individual é nosso maior patrimônio


O Estado de Direito é tanto um conceito legal quanto uma construção política.
O Estado de Direito é tanto um conceito legal quanto uma construção política. (Pixabay)
Por Jose Antonio de Sousa Neto*
Irene Kahn (antiga secretária-geral da Anistia Internacional e diretora-geral da Organização Internacional de Direito do Desenvolvimento) argumenta que se o Estado de Direito deve ser um caminho para o desenvolvimento sustentável, então, nas palavras do professor Harold Berman, “a justiça baseada na lei deve dar lugar à lei baseada na justiça”.
Harari em seu livro Homo deus (2017) as narrativas compartilhadas são o que nos permitem colaborar em larga escala e, assim, dominar como espécie. Segundo ele, isso está enraizado em nossa comunicação. Os seres humanos contam histórias desde o alvorecer da fala. Com o tempo, nos tornamos mais inteligentes, e é por isso que, geralmente, a história que ganha a longo prazo é a que mais nos beneficia no geral. Harari argumenta que as religiões fazem parte desta narrativa, mas que de uma forma geral elas só beneficiavam uma pequena parcela da população. 
Quando o mundo estava menos conectado, as narrativas naturalmente se formavam regionalmente. Mas hoje em dia, há muito mais acesso às muitas religiões, movimentos políticos e a diferentes sistemas de crenças em todo o mundo. Graças à internet, as escolhas se tornaram mais amplas, assim como uma percepção de que não há uma narrativa única que seja a escolha certa para todos. Neste sentido e portanto, segundo Harari, a religião está sendo lentamente substituída nas gerações mais recentes. Segundo sua argumentação, como consequência ou resultado deste processo, a história que domina o mundo hoje é o humanismo. 
Nesta visão do mundo, os seres humanos são o elemento central e nossa liberdade individual é nosso maior patrimônio. No centro estão a ciência, a racionalidade, o progresso, a tecnologia e a auto realização. Das diversas variantes do humanismo, Harari argumenta que a mais comumente escolhida é o liberalismo. Segundo ele, o liberalismo nos permite expressar o humanismo na vida cotidiana, traduzindo suas ideias em códigos morais específicos, leis e aspirações políticas. Mesmo as campanhas por uma determinada causa, como a conscientização sobre a mudança climática, menos desperdício ou redistribuição de riqueza, são muitas vezes apenas narrativas liberais disfarçadas.
O Estado de Direito é tanto um conceito legal quanto uma construção política. É sobre como as sociedades são organizadas e o poder é exercido. Bolzan (2018) apresenta uma síntese estruturada não só do processo evolutivo até o Estado (Liberal) Democrático de Direito, mas dos desafios aos quais este Estado tem sido submetido. Por outro lado, a busca por um direcionamento das construções e soluções que se farão necessárias em função do processo acelerado de transformação tecnológica e do impacto social derivado deste processo não pode ser concebida de forma efetiva fora de uma perspectiva de desenvolvimento sustentável.
No contexto do desenvolvimento sustentável, Hopwood, Mellor e O’Brien (2005) argumentam que o desenvolvimento sustentável, embora seja uma frase e ideia amplamente usada, tem muitos significados diferentes e, portanto, provoca diferentes  respostas. Em termos gerais, o conceito de desenvolvimento sustentável é uma tentativa de combinar preocupações crescentes sobre uma série de questões ambientais com questões socioeconômicas. Segundo estes autores, tem havido longos debates sobre metas e meios dentro de teorias que lidam com questões ambientais e socioeconômicas, falando ao mesmo tempo das prioridades em satisfazer as necessidades dos pobres, proteger o meio ambiente e um crescimento econômico mais rápido. 
Neste sentido, a frouxidão do conceito e dos fundamentos teóricos tem permitido  uso das frases “desenvolvimento sustentável e sustentabilidade" de forma indiscriminada por políticos e líderes empresariais. Segundo o Workshop sobre Sustentabilidade Urbana da Fundação Nacional de Ciência dos EUA (Apud Hopwood, Mellor e O’Brien), a sustentabilidade é “carregada de tantas definições que arrisca mergulhar na falta de sentido, na melhor das hipóteses, e se tornar um slogan para demagogia, na pior das hipóteses. É usada para justificar e legitimar uma miríade de políticas e práticas que vão desde o utopismo agrário comunal até o desenvolvimento de mercado intensivo em capital em larga escala”. 
Todos os proponentes do desenvolvimento sustentável concordam que a sociedade precisa mudar, embora haja grandes debates sobre a natureza do desenvolvimento sustentável, as mudanças necessárias e as ferramentas e os atores para essas mudanças. Não existe uma única filosofia unificada de desenvolvimento sustentável. Na maioria dos casos, as pessoas trazem para os debates sobre desenvolvimento sustentável perspectivas políticas e filosóficas já existentes.
Voltando à perspectiva humanista argumentada por Harari, mas não se atendo de forma nenhuma exclusivamente a ela,  é importante mencionar a Carta Encíclica Laudato si, do papa Francisco (24 de maio de 2015). Nela, o papa Francisco realçou o desafio de proteger a natureza como sendo nossa casa comum, ressaltando a preocupação de unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável e integral. Suas exaltações coincidem com a crescente ocupação de líderes globais e locais de todo a humanidade com questões que unem eventos ecológicos e humanos em um complexo contexto socioambiental:
"A responsabilidade perante uma terra que é de Deus implica que o ser humano, dotado de inteligência respeite as leis da natureza e os delicados equilíbrios entre os seres deste mundo".
Segundo Hopwood, Mellor e O’Brien, há uma divisão fundamental entre os defensores do status quo e uma transformação em seu conceito e abordagem do desenvolvimento sustentável. A abordagem de status quo vê a mudança através do gerenciamento, de cima para baixo (top-down) e incremental, das estruturas existentes de tomada de decisão. A visão de transformação é que a mudança será principalmente através de ação política trabalhando dentro e fora das estruturas existentes. 
O discurso do desenvolvimento sustentável no presente é dominado pela perspectiva gerencial. Na maior parte do mundo, as questões do desenvolvimento sustentável ainda não estão suficientemente no topo da agenda política. Mesmo questões como a mudança climática ou a fome em larga escala não dominam as notícias ou o debate político. Defensores do status quo veem a causa raiz da falta de desenvolvimento sustentável na falta de conhecimento e mecanismos apropriados, em vez de algo mais profundo. Esta visão mais restrita permite compensações entre questões ambientais e sociais, se é aceitável alguma poluição para aumentar o crescimento, ou perda de algumas pastagens para um parque, ou empregos para um ar mais limpo. Mas há evidências crescentes de mudança climática causada pelo homem  (tanto através de estudos científicos quanto de fatos amplamente noticiados pela mídia). 
A perda de biodiversidade e a salinização do solo continuam, em grande parte devido ao presente métodos de produção e comercialização. Por outro lado e paradoxalmente, as oportunidades para o desenvolvimento tecnológico e a possibilidade que a longo prazo os prós superem em larga escala os contras são inúmeras, mas não poderão se materializar em sua plenitude sem a integração de um Estado (Liberal) Democrático de Direito que seja igualmente pleno. E isso não tem sido um desafio fácil. Volto aqui à Laudato si fazendo mais uma vez menção ao papa Francisco:
"A ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade humana que Deus nos deu.  A tecnologia deu remédio a inúmeros males, que afligiam e limitavam o ser humano. O destino comum obriga-nos a procurar um novo início. Um mundo frágil, com um ser humano a quem Deus confia o cuidado do mesmo interpela nossa inteligência para reconhecer como deveremos orientar, cultivar e limitar nosso poder".
O apelo à solidariedade e sustentabilidade ganhou nova urgência em nosso mundo perigoso e ameaçado. Existe uma ampla insatisfação e desilusão com instituições estabelecidas. E o tempo todo, a bomba-relógio do mundo. O aquecimento global continua implacável, mesmo quando o Acordo de Paris é relegado a um segundo plano (ou até mesmo renegado) por nações importantes. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável é composta por 17 objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) universalmente aplicáveis, abrangendo uma gama abrangente de prioridades ambientais para todos os países do mundo. 
Como aponta Irene Kahn (2017) uma característica distinta da Agenda 2030 é o reconhecimento do acesso à justiça e o Estado de Direito como resultados e facilitadores do desenvolvimento sustentável. Esse entendimento é explicitado no ODS 16 e incorporado implicitamente em vários outros objetivos e metas em toda a Agenda 2030, por meio de referências à igualdade, inclusão e equidade, direitos, marcos legais e instituições responsáveis. Isso poderia ser um fator de mudança para o desenvolvimento sustentável. Kahn relembra que, embora a inclusão deste ODS (objetivo de desenvolvimento sustentável) na agenda tenha sido altamente controverso, ao final líderes mundiais concordaram que equilibrar a competição entre interesses intergeracionais e intrageracionais – a erradicação da pobreza hoje e a preservação do planeta para o futuro - requer processos e mecanismos transparentes, inclusivamente desenvolvidos, baseados em regras, capazes de assegurar a equidade para todos.
O secretário-geral da ONU definiu o Estado de Direito como:
"Um princípio de governança no qual todas as pessoas, instituições e entidades, públicas e privadas, incluindo o próprio Estado, são responsáveis perante as leis que são publicamente promulgadas, igualmente aplicadas e julgadas independentemente, e que são consistente com as normas e padrões internacionais de direitos humanos".
A justiça é centrada nas pessoas. Trata-se de criar resultados justos e uma sociedade inclusiva. O Estado de Direito, por outro lado, é centrado no estado. É sobre instituições e governança, e a aplicação de normas, procedimentos e regulamentos. Reduzir a desigualdade é um dos principais objetivos do desenvolvimento sustentável, e no cerne do Estado (Liberal) Democrático de Direito está o princípio da igualdade: que todos sejam iguais perante a lei e igualmente responsáveis perante a lei. Aqui, no entanto, cabe ressaltar que estamos neste momento nos atendo ao contexto de igualdade dentro de uma perspectiva estritamente jurídica. Como salienta o economista F. A. Hayek (Apud Kahn 2017), ganhador do Premio Nobel de 1974:
"A igualdade formal perante a lei está em conflito, e de fato, é incompatível com qualquer atividade do governo visando a igualdade material ou substantiva de diferentes pessoas e... qualquer política que vise diretamente o ideal da justiça distributiva deve levar à destruição do Estado de Direito".
É justamente neste ponto que reside uma das maiores complexidades de compatibilização dos conceitos de Estado de Direito, desenvolvimento econômico e sustentabilidade. Como já argumentei em textos anteriores, sobretudo em países em desenvolvimento, muito mais do que um desafio de constitucionalidade e institucionalidade estamos lidando, com muita frequência e preponderantemente, com questões de funcionalidade - ou de desfuncionalidades - do Estado (Liberal) Democrático de Direito. 
No caso brasileiro elas existem nos três poderes, mas se tornam particularmente perversas no judiciário em função das inúmeras barreiras para enfrentá-las. Na verdade, como também já argumentei em texto anterior a essência do problema já se inicia com a ênfase sobre a independência dos poderes quando o correto seria uma ênfase na separação dos poderes, na autonomia de cada um deles e na interdependência entre eles. São conceitos sutis, mas profundamente diferentes uns dos outros.  No Brasil, como já havia comentado faz duas semanas aqui neste mesmo espaço, a essencial separação de poderes tem sido eclipsada, por exemplo,  pela tragédia da autorregulação, em que a autonomia devida se distorce como independência indevida e desconexão.
Embora esteja longe de ser uma panaceia, as questões da governança pública e do compliance estão entre os elementos essenciais para municiar a efetividade de qualquer Estado (Liberal) Democrático de Direito diante dos desafios presentes e futuros e da inexorável necessidade de promover um desenvolvimento e uma inclusão que sejam sustentáveis. Voltaremos a esta questão em um futuro próximo.
*Professor da EMGE (Escola de Engenharia de Minas Gerais)

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