Contínuos naufrágios têm transformado o Mediterrâneo num cemitério para muitos migrantes e refugiados (ANSA) |
O que se tem visto – de um lado e do outro do Atlântico – é um falimento da gestão da crise migratória: a contínua adoção de medidas restritivas por parte dos governos em questão respondendo ao fenômeno com a criação de muros e barreiras físicas e legislativas, a negação daquela solidariedade que ao longo dos séculos caracterizou o humanismo da Europa e a política migratória dos EUA, nação formada por cidadãos oriundos de todas as partes do mundo
Raimundo de Lima - Cidade do Vaticano
Mais uma vez encontramo-nos diante da fatídica situação de contar os mortos no enésimo naufrágio nas águas do Mar Mediterrâneo. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), trata-se do mais trágico de 2019.
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Com um balanço ainda não oficial, mais de 150 pessoas poderão ter perecido na noite desta quinta para sexta-feira (26/07) no naufrágio de duas embarcações ao largo de Al Khoms, cidade situada a 120Km ao leste de Trípoli, capital da Líbia.
Segundo a organização humanitária internacional “Médicos Sem Fronteiras” (MSF), das cerca de 300 pessoas envolvidas no naufrágio, os sobreviventes seriam 135, salvos por embarcações de pescadores, depois entregues à guarda costeira da Líbia, país em guerra com contínuos combates entre vários grupos beligerantes e, por conseguinte, não seguro.
Diante da contínua deterioração das condições de segurança na Líbia, Save the Children ressalta a urgência de a comunidade internacional, em primeiro lugar a Europa, multiplicar os esforços para criar vias de acesso seguras das áreas de crise ou de trânsito.
A organização internacional que há um século luta para salvar as crianças e garantir-lhes um futuro chama a Europa à sua responsabilidade considerando absolutamente inaceitável que o Velho Continente permaneça inerte diante da tragédia que continua se verificando às suas portas e afirma que a morte de centenas de homens, mulheres e crianças é o reflexo da incapacidade de gerir o fenômeno migratório.
Segundo dados disponíveis, no último ano a taxa de mortalidade na rota do Mediterrâneo central triplicou: o risco de morrer ao longo deste trecho da travessia do norte da África em direção à Europa passou de 2-2,4% do período 2014-maio de 2018 para 6,2% do período junho de 2018-junho de 2019.
Para se ter uma ideia melhor do que isso significa, trazemos aqui esse percentual em números concretos: até maio de 2018 morria uma pessoa entre cada 45 que partia, de lá para cá neste último ano morre uma pessoa entre cada 14 que se aventura nessa travessia. Ademais, 60% dos que partem são reconduzidos à Líbia, país do norte da África que por sua posição geográfica constitui território de passagem para migrantes e refugiados de várias partes do continente que, dali, tentam chegar à Europa via-maris.
As razões porque se aventuram já nos são conhecidas, homens, mulheres, jovens e adolescentes, por vezes pouco mais que crianças – muitas vezes desacompanhadas, que fogem de situações de conflito, de guerra, de perseguições, da fome e da miséria, em busca de melhores condições de vida.
Trata-se daquela mesma busca de melhores condições de vida e perspectiva de um futuro que leva nossos irmãos latino-americanos, particularmente da América Central – mas não só, a deixar seus países em direção ao norte do continente.
Tanto na Europa como na América, a migração tem como princípio a fome, a pobreza, a violência e a falta de perspectivas.
Deste lado do Atlântico, o país de passagem para os EUA é o México, que diante do fenômeno migratório dos últimos tempo vive uma realidade sem precedentes. Segundo o Instituto Nacional da Migração (INM) do México, estima-se que nos primeiros seis meses deste ano o fluxo de migrantes já tenha superado em 232% o registrado em 2018, e cerca de 360 mil sem documentos encontram-se espalhados no território nacional mexicano ou já entraram nos EUA.
Diante do fenômeno do maior movimento migratório registrado em nossos dias após a Segunda Guerra Mundial, o que se tem visto – de um lado e do outro do Atlântico – é um falimento da gestão desta crise: a contínua adoção de medidas restritivas por parte dos governos em questão respondendo ao fenômeno com a criação de muros e barreiras físicas e legislativas, a negação daquela solidariedade que ao longo dos séculos caracterizou o humanismo da Europa e a política migratória dos EUA, nação formada por cidadãos oriundos de todas as partes do mundo.
A esse propósito, os bispos mexicanos, na mensagem divulgada esta semana intitulada “A dignidade dos migrantes”, recordam a exortação do Papa Francisco a acolher, proteger, promover e integrar. Os prelados ressaltam que responder ao fenômeno migratório construindo muros “significa deixar-nos levar pelo temor e pela incerteza”.
Um muro “não vai às raízes e às verdadeiras causas do fenômeno migratório. No México e na América Central o combate à pobreza e à desigualdade parece ser substituído pelo medo do outro, que é nosso irmão”, afirmam evidenciando que a Igreja e a sociedade civil sempre propugnaram a ‘não criminalização’ dos migrantes e dos defensores dos direitos humanos, que lutam pela dignidade humana, contracorrente e com grandes riscos para a própria segurança e suas vidas.
Recentemente, evidenciaram que a única barreira que poderia deter o fluxo de migrantes é o desenvolvimento econômico, político, cultural e social nos países de origem dos mesmos.
A falta de um desenvolvimento ao alcance de todos, povos e nações, é geradora de desigualdades, de conflitos, da ausência de paz. A propósito, o Papa Paulo VI já ressaltava na Populorum Progressio – encíclica social de 1967 – que a paz é fruto do desenvolvimento integral de todo homem e do homem todo, de todas as pessoas.
Enquanto isso, não teremos paz, e haveremos de deparar-nos como estas horas, a contar os mortos no Mediterrâneo, e não só, histórias tragicamente concluídas de pessoas – nossos irmãos e irmãs – que, spes contra spem, esperavam contra toda esperança: vidas ceifadas, sonhos despedaçados, humanidade continuamente humilhada. Até quando?
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