quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Por que o Vale do Silício precisa de valores jesuíticos?


Santo Inácio, o fundador da ordem dos jesuítas, não era nem tecnófobo, nem cético do moderno, mas era, sobretudo, um homem disruptivo.


O fundador dos jesuítas viveu profundamente as transformações de seu tempo.
O fundador dos jesuítas viveu profundamente as transformações de seu tempo. (Jeffrey Pioquinto, SJ/ Mike Seay/ America)
Por Kevin O'Brien*

O Vale do Silício, coração do empreendedorismo e dos negócios em tecnologia dos Estados Unidos, contribuiu imensamente para o progresso humano nas últimas décadas. Há muito para admirar, incluindo novas formas de conexão humana imediata, a automação que economiza tempo e a disponibilidade de tecnologia poderosa nas mãos de ricos e pobres. Mas o ritmo e a escala da disrupção tem vindo com custos que estão se tornando mais claros para os líderes públicos e empresariais.
Nitasha Tiku, uma escritora sênior da revista Wired, observou no ano passado que: “só agora, uma década depois da crise financeira, o público americano parece apreciar que o que pensamos ser uma ruptura funcionou mais como uma extração – de nossos dados, nossa atenção, nosso tempo, nossa criatividade, nosso conteúdo, nosso DNA, nossas casas, nossas cidades, nossos relacionamentos”.
O ritmo e a escala da ruptura tecnológica vieram com custos que estão se tornando mais claros para o público e para os líderes empresariais.
Hemant Taneja, diretor-geral da General Catalyst, acrescentou recentemente à crítica da Harvard Business Review: "‘Mova-se rápido e quebre as coisas’ é como os empreendedores consideram a ruptura: mais é sempre melhor. Corremos para colocar nossos produtos nas mãos dos consumidores o mais rápido possível, sem levar em conta o mérito – e a justificativa – dos sistemas de governança offline". Taneja continua: “Se a inovação é sobreviver no século 21, precisamos mudar a forma como as empresas são construídas, alterando as perguntas que fazemos a elas”. Essas novas perguntas requerem uma reflexão ética mais profunda – o que na tradição inaciana chamamos de “discernimento”.
Uma recente reunião de líderes de escolas de negócios e executivos do Vale do Silício na Universidade jesuíta de Santa Clara – que funcionou como sede da terceira Conferência Global de Ética Empresarial dos Jesuítas e a 22ª reunião anual de Antigos Alunos de Educação Empresarial dos Jesuítas – abordou esse anseio por uma nova estrutura orientadora através da imaginação católica e inaciana.
Lembremos que santo Inácio, o fundador da ordem dos jesuítas, não era nem tecnófobo, nem cético do moderno, mas era, sobretudo, um homem disruptivo. Longe de se retirar do mundo, Inácio mergulhou no humanismo renascentista, na vida civil e na febre exploratória de seu tempo. Uniu o antigo e o novo, tanto na espiritualidade quanto na educação, tomando emprestado dos outros o que funcionava e deixando para trás o que não. Basta fazer uma pesquisa rápida no Google para ver todos os químicos, físicos, astrônomos, artistas e outros jesuítas que adotaram novas tecnologias e ideias e lideraram a inovação em seus campos.
Se o modelo de “mover-se rapidamente e quebrar as coisas” for ele mesmo quebrado, uma ética inaciana de “discernir a ruptura” oferece uma alternativa. E se nós avançássemos a uma ética de “mover-nos reflexivamente e ajudar pessoas”?
Mover-se de forma reflexiva significa que temos tempo suficiente para entender as consequências previsíveis de nossas inovações e ações destrutivas.
Esta chamada para “mover-se pensativamente” não significa cautela excessiva ou tomada de decisão em ritmo lento. Podemos ainda nos mover rapidamente e até mesmo quebrar as coisas para atender às necessidades críticas, mas com discernimento saberíamos por que estamos fazendo o que estamos fazendo. Não apenas aceitamos o quebre como um bem em si, simplesmente porque é a coisa mais nova ou a tendência mais quente. Se queremos ser boas pessoas que farão coisas boas e às vezes heroicas, então devemos ter uma noção clara do bem que nos motiva e nos convoca. Mudar pensativamente significa que temos tempo suficiente para entender as consequências previsíveis de nossas inovações e ações disruptivas – por exemplo, os impactos no emprego e no meio ambiente, e possíveis usos indevidos de novas tecnologias por outros.
Observe como é impessoal a chamada para “quebrar as coisas”. Não nos convida a considerar se nesse quebrar as coisas podemos estar, de fato, rompendo alguém. A frase assume que quebrar é o bem que nos motiva e nos convoca. Uma ética inaciana de ruptura interpela essa suposição ao colocar o ser humano no centro de nosso discernimento. Na tradição católica, o ser humano é criado à imagem de Deus com uma dignidade que nunca pode ser tirada. Da mesma forma, na educação jesuíta, muitas vezes falamos sobre cura personalis: uma forma de cuidar da pessoa como um todo, corpo e espírito em unidade.
Devemos aplicar a cura personalis às quebras. Desenvolver as pessoas é pensar além de como um aplicativo torna uma tarefa mais conveniente ou como um novo dispositivo médico ajudará uma parte do corpo. Uma ética inaciana nos pede também para considerar como a ruptura afeta a segurança econômica e física das pessoas, encorajando ou não um estilo de vida saudável, se pode enriquecer sua vida espiritual e como isso afeta os contextos imediatos e maiores.
Essas considerações compõem um discernimento saudável sobre o “quebrar as coisas”. Sim, o progresso disruptivo nos pede para pensar de maneira diferente, para desmembrar a maneira como as coisas estão montadas atualmente, mas devemos fazê-lo somente depois de termos percebido que nosso fim é nobre. Guiados por nossos valores compartilhados, como santo Inácio, podemos olhar para um mundo em rápida mudança, com grande esperança e antecipação. Podemos saber que a ruptura pode ser para o bem se ela não se mover apenas de forma acelerada, mas ponderada, e se eleva as pessoas em vez de simplesmente quebrar as coisas.

Publicado originalmente por America.
Tradução: Ramón Lara

*Este ensaio foi adaptado de um discurso proferido pelo padre O’Brien em 12 de julho, durante a Conferência Global de Ética Empresarial dos Jesuítas e reunião anual dos Antigos Alunos em Educação Empresarial Jesuíta, realizada na Universidade de Santa Clara. Kevin O'Brien, S.J., é o presidente da Universidade de Santa Clara, em Santa Clara, Califórnia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário