sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

A cegueira intelectual e espiritual pode ser nosso maior problema cultural

Muitas vezes o cidadão de bem tem boas intensões, o seu problema é a cegueira e ignorância
Não há preocupação suficiente das pessoas em serem inteligentes, informadas, entenderem os fatos ou ouvirem respeitosamente os profissionais e especialistas
Não há preocupação suficiente das pessoas em serem inteligentes, informadas, entenderem os fatos ou ouvirem respeitosamente os profissionais e especialistas (Unsplash/ Kirill Balobanov)
Daniel P. Horan*

O provérbio, “o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções”, pode muito bem ter se tornado tão aforístico que esquecemos que realmente é uma profunda verdade. Pode-se olhar em volta das paisagens civis e eclesiais de muitos países e se reconhecer muitos problemas, respostas inadequadas, corrupção evidente, mentes fechadas e uma série de outras questões preocupantes que justificam o diagnóstico de um mundo de más intenções, falsidades e males.

E, embora haja indiscutivelmente más pessoas em nossa Igreja e no mundo, a maioria delas se esforça para fazer o certo, buscar uma vida íntegra e não desejam prejudicar ninguém. Então, como acabamos com a bagunça que temos diante de nós?

Recentemente, tive a oportunidade de reler o poderoso e pequeno livro do pastor Martin Luther King Jr.: Força para amar. No início, em um ensaio intitulado “Amor em ação”, King examina duas lições do relato de Lucas sobre Jesus na cruz, particularmente à luz da expressão do perdão de Cristo crucificado à multidão (Lucas 23,34).

A primeira lição é que Jesus “trilhou o caminho”, ou seja, esse último ato extremo de perdão “é uma expressão maravilhosa da capacidade de Jesus de combinar palavras com ações”. Ele passou toda a sua vida e ministério pregando a boas nova da misericórdia, do perdão e cura divinos, e a integridade de Cristo se manteve fiel até o fim mais terrível. Esta lição nos revela, a nós que afirmamos seguir a Cristo, que “o perdão não é um ato ocasional; é uma atitude permanente” a ser cultivada e praticada no dia a dia.

Mas é a segunda lição de King, no livro, que me impressionou de uma maneira nova. King explica que a oração de perdão de Jesus “é uma expressão da consciência de Cristo sobre a cegueira intelectual e espiritual do homem. ‘Eles não sabem o que fazem’, disse Jesus. A cegueira era o problema deles; enquanto a iluminação era a necessidade. Precisamos reconhecer que Jesus foi pregado na cruz não apenas pelo pecado, mas também pela cegueira”.

Com base na história americana de guerra, violência, racismo e escravidão, King argumenta que não basta apenas atribuir esses males a homens (e às vezes mulheres) que foram simplesmente maus atores misantrópicos; mas a uma realidade muito maior de grupos de pessoas bem-intencionadas que sofrem de cegueira intelectual e espiritual.

“Alguns homens ainda acham que a guerra é a resposta para os problemas do mundo. Eles não são pessoas más. Pelo contrário, são cidadãos bons e respeitáveis, cujas ideias estão escondidas nas vestes do patriotismo”, escreveu King. Também acrescentou: “todo o sistema de escravidão foi amplamente perpetuado por pessoas sinceras, embora espiritualmente ignorantes”, e “alguns dos mais vigorosos defensores da segregação são sinceros em suas crenças e fervorosos em suas motivações”.

Contudo, King não estava interessado em defender essas políticas e atitudes, comportamentos e mal-entendidos. Em vez disso, baseou-se no Evangelho para interpretar os “sinais dos tempos”, que é precisamente o que o Concílio Vaticano II chama todos os cristãos católicos a fazer. Com isso, o pastor descobriu a mesma verdade no âmago desse aforismo facilmente descartável sobre as boas intenções e os caminhos para o inferno - “a sinceridade e a consciência em si mesmas não são suficientes”. King explica: “a história provou que essas nobres virtudes podem degenerar em vícios trágicos. Nada no mundo é mais perigoso do que a ignorância sincera e a estupidez consciente”.

Acredito que o discernimento e a cautela de King são virtudes urgentes para nós hoje.

Nas últimas semanas, tenho observado a fase pública do inquérito de impeachment se desenrolar diante do Congresso e do mundo. Como oficial de carreira não partidário e após ter visto outro oficial de carreira, supostamente não partidário, testemunhar perante o Comitê de Inteligência do Congresso por dias e dias, fiquei perplexo, depois chateado e logo em seguida irritado com os membros do comitê republicano que estavam zombando de um processo de tal importância. O aparente desdém que os republicanos exibiam aparentando inteligência, profissionalismo e competência era nojento. A repetição de teorias da conspiração facilmente refutáveis era insultante. E fui rápido em atribuir malícia àqueles que não podiam levar a sério seus juramentos, que aparentemente haviam escolhido a segurança política de curto prazo em detrimento do significado histórico e do potencial impacto de longo prazo do que estava se desenrolando.

E então, na semana passada, houve um debate entre o membro do Comitê Judiciário da Câmara, Doug Collins, da Geórgia, e a professora de direito Pamela Karlan, da Universidade de Stanford, que apontou precisamente o que King falou em sua obra. Em sua ignorância de abertura, Collins supõe — com base em nenhuma evidência — que os profissionais acadêmicos antes dele não fizeram o trabalho necessário para refletir o suficiente sobre o assunto pelo qual o Congresso os havia convocado. Karlan, justamente ofendida, demonstrou que nem todas as pessoas são tão ignorantes ou incompetentes quanto Collins supõe e, com efeito, ilustrou isso com seu próprio comportamento.

Muito foi feito sobre o crescente viés anti-intelectual do Partido Republicano, mas as audiências do Comitê de Inteligência e do Judiciário das últimas semanas o colocaram em evidência. O que King me fez pensar, porém, é a possibilidade de que esses republicanos sejam pessoas bem-intencionadas, boas e até conscienciosas. Que, apesar do tratamento irreverente de suas sérias responsabilidades, os republicanos do Congresso podem de fato não ser pessoas más. Eles são, em vez disso, intelectual e espiritualmente cegos. No entanto, eles ainda são responsáveis por seu comportamento.

King explica que: “diferentemente da cegueira física que geralmente é infligida aos indivíduos como resultado de forças naturais além de seu controle, a cegueira intelectual e moral é um dilema que o homem inflige a si próprio por seu trágico mau uso da liberdade e por não usar sua mente em sua máxima capacidade. Um dia aprenderemos que o coração nunca pode estar totalmente certo se a cabeça estiver totalmente errada”.

Esta é uma crise espiritual, tanto quanto intelectual. Isso foi o que não consegui perceber no início. Mas a cabeça e o coração estão ligados.

O que está acontecendo no Congresso é sintomático de um problema cultural maior que enfrentamos hoje. É responsabilidade da Igreja lembrar os homens e mulheres que a ignorância não é uma benção e que, de fato, o caminho do inferno é frequentemente pavimentado com boas intenções!

Como King explica, “a Igreja deve implorar aos homens que sejam bons e bem-intencionados e deve exaltar as virtudes do bom coração e da consciência. Mas em algum lugar ao longo do caminho, a Igreja deve lembrar aos homens desprovidos de inteligência, que a bondade e a consciência se tornarão forças brutais e vergonhosas crucificações. A Igreja nunca deve se cansar de lembrar aos homens que todos têm a responsabilidade moral de serem inteligentes”.

Não há preocupação suficiente das pessoas em serem inteligentes, informadas, entenderem os fatos ou ouvirem respeitosamente os profissionais e especialistas. Infelizmente, isso é verdade tanto para muitos líderes da Igreja quanto para líderes civis, o que simplesmente complica o desafio diante de nós. King nos lembra que “não é preciso ser um estudioso profundo para ter uma mente aberta, nem um acadêmico entendido para se engajar em uma busca assídua pela verdade”, mas você precisa ter uma mente aberta e comprometida com o aprendizado, o diálogo e a mudança.

Estou aprendendo a dar aos cegos, intelectual e espiritualmente, o benefício da dúvida — assim como eu mesmo gostaria que essa generosidade fosse estendida a mim — mas não basta sermos pessoas boas que simplesmente querem fazer o bem. Há muito em jogo nisso. Devemos superar nossa própria cegueira intelectual e espiritual e incentivar outros a fazerem o mesmo. Devemos nos esforçar para amar a verdade e exercer bom senso, mesmo quando é difícil ou representa um desafio para o nosso próprio conforto ou preconceitos. E devemos nos responsabilizar mutuamente, pois a ignorância voluntária pode ser pecaminosa e as consequências trágicas. Basta perguntar a Jesus na cruz.

*Daniel P. Horan é frade franciscano e professor-assistente de teologia e espiritualidade sistemáticas na Catholic Theological Union em Chicago. Seu livro mais recente é Catholicity and Emerging Personhood: A Contemporary Theological Anthropology. Siga-o no twitter: @DanHoranOFM

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