Tratar a pessoa humana como descarte é blasfemar contra Deus.

Evangelizar talvez seja o propósito da Estação Primeira de Mangueira, com seu samba que este ano canta esse Jesus (mangueira.com.br)
Élio Gasda*
Em tempos de tanta blasfêmia evangelizar é preciso. Blasfêmia é um substantivo feminino, palavra ou enunciado que insulta a divindade ou aquilo que é sagrado para uma religião. A blasfêmia é desvio dentro da comunidade religiosa. Uma campanha política que utiliza o lema “Deus acima de todos e o Brasil acima de tudo” não seria uma blasfêmia? Deus não combina com ódio, com elogio à tortura e a torturadores. O Deus cristão se revela como amor, misericórdia e reconciliação.
Evangelizar é verbo transitivo direto, é difundir o Evangelho de Jesus Cristo. O Evangelho de Jesus é o amor, amor incondicional. Assim ele ensinou aos pobres e ricos, negros e brancos, homens e mulheres: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34).
Em homilia na capela da Casa Santa Marta, na semana passada, papa Francisco lembrou que “nós amamos Deus porque Ele nos amou primeiro. Eu começo a amar, ou posso começar a amar, porque sei que Ele me amou primeiro”, e completou: “quem ama a Deus e não ama o irmão é um mentiroso (cf. 1 Jo 5, 1-4)”. Aquele que diz: “eu amo a Deus, rezo, entro em êxtase e tudo… e depois descarta os outros, ou é indiferente aos outros, é mentiroso... Esta palavra na Bíblia é clara, mentiroso é o modo de ser do diabo: é o Grande Mentiroso, o pai da mentira”. Continua o pontífice: “Aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê”.
Francisco ensina que o amor está no cotidiano. “O verdadeiro amor... é água todos os dias, com os problemas, com os afetos, com os amores e com os ódios, mas é isso. Amar a concretude... Mas existe uma maneira de não amar a Deus e de não amar o próximo um pouco escondido, o que é indiferença”. E a indiferença mata, desumaniza.
Tratar a pessoa humana como descarte é blasfemar contra Deus. Se todos os seres humanos são criados à imagem e semelhança de Deus, então Jesus tem vários rostos. A imagem de Jesus que temos anunciado é realmente aquela que transmite o Evangelho? Encarnado na periferia, na companhia de pecadores, prostitutas, pobres e doentes, desprezados, Jesus se manifesta nos corpos torturados, no negro assassinado, no corpo feminino violado, no corpo gay exterminado.
A omissão diante do racismo, do feminicídio, do extermínio de indígenas, da violência com pessoas indefesas e pobres, da transfobia e homofobia, da exploração do trabalhador, não seria uma forma de blasfêmia? A doutrina cristã repudia qualquer tipo de preconceito e discriminação. Como seria a volta de Cristo hoje, em um contexto de tanta intolerância e violência? Por isso evangelizar é urgente.
Evangelizar é tarefa diária. É ser como Jesus que “condenou o acúmulo de riqueza. Insurgiu-se contra o comércio da fé e desafiou a hipocrisia dos líderes religiosos de seu tempo” (Leandro Vieira, figurinista e carnavalesco). Evangelizar aqueles que não entenderam que “preso à cruz, Ele é a extensão de tantos... Sua imagem humana não pode ser apenas branca e masculina. Na cruz, Ele é homem e é também mulher. Ele é o corpo indígena nu que a igreja viu tanto pecado e nenhuma humanidade. Ele é a ialorixá que professa a fé apedrejada e vilipendiada. Ele é corpo franzino e sujo do menor que você teme no momento em que ele lhe estende a mão nas calçadas. Na cruz, Ele é também a pele preta de cabelo crespo. Queiram ou não queiram, o corpo andrógino que te causa estranheza, também é a extensão de Seu corpo”, diz Leandro Vieira. Todas as pessoas devem ser amadas como filhas de Deus. Somos todos irmãos em Cristo.
Evangelizar talvez seja o propósito da Estação Primeira de Mangueira, com seu samba que este ano canta esse Jesus. “Se sobrevivesse às estatísticas destinadas aos pobres que nascem em comunidades, Jesus chegaria aos 33 anos para morrer da mesma forma (assassinado por um policial que confundiu um macaco hidráulico que Ele carregava com um fuzil). “Teria a morte incentivada pelas velhas ideias que ainda habitam os homens. O amor irrestrito ainda assusta. A diferença jamais foi entendida. Estender a mão ao oprimido ainda causa estranheza” (Leandro Vieira).
Sim, Jesus ressuscita todos dias junto a esse povo que sofre, mas também que samba, canta e dança para louvar a Deus, celebrar a vida. A alegria é uma forma potente de resistência.
“Meu nome é Jesus da Gente
Nasci de peito aberto, de punho cerrado
Meu pai carpinteiro desempregado
Minha mãe é Maria das Dores Brasil
Enxugo o suor de quem desce e sobe ladeira
Me encontro no amor que não encontra fronteira
Procura por mim nas fileiras contra a opressão”
(extrato do samba-enredo da Mangueira, de Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo).
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