Após sair documento papal que diz não à proposta de ordenar homens casados na Amazônia, uma reflexão histórica sobre as tentativas de flexibilizar o celibato por parte de bispos brasileiros
Bispos do Brasil assinam "Pacto das Catacumbas pela casa comum" durante Sínodo para a Amazônia, em 2019. (Repam)
Mirticeli Medeiros*
Em uma conversa informal com uma colega vaticanista, ela me disse uma vez: “As ideias que surgem no teu continente refletem, sempre, em toda a Igreja”. Na época, achei exagerada tal afirmação. Depois, após ter dedicado parte da minha vida ao estudo da história eclesiástica, cheguei à conclusão de que ela tinha razão.
E as propostas apresentadas pelo sínodo da Amazônia, realizado em outubro de 2019, demonstraram que ela estava certa. Foi a primeira vez, desde a década de 60, que um grupo de bispos propôs uma exceção à regra do celibato para atender a um território específico. Foram 126 votos favoráveis e 41 contrários à flexibilização da disciplina durante o encontro de bispos do ano passado. Uma sugestão que enfureceu conservadores, animou progressistas e fez refletir aqueles que não se enquadravam em nenhum dos grupos, levando em conta que o celibato facultativo é uma tradição consolidada na ala oriental do catolicismo.
Padres conciliares brasileiros e os viri probati
Até hoje, poucos têm conhecimento da atuação dos 243 bispos brasileiros durante o Concílio Vaticano II. O legado que eles deixaram foi além do apelo social em torno do Pacto das catacumbas (1965) e do apoio à maior participação dos bispos nas decisões da igreja. O retorno do diaconato permanente, prática observada nos primeiros 4 séculos da igreja, foi proposto por eles, contando com o apoio de outros bispos latino-americanos à época.
Tudo isso porque, em primeiro momento, foi solicitada uma abertura aos viri probati, quando homens casados “de fé comprovada” são autorizados a assumir funções sacerdotais em situações de extrema necessidade. Com o objetivo de suprir a falta de padres no território nacional, dom Pedro Paulo Koop, bispo de Lins (SP) e dom Austregéliso Mesquita, bispo de Afogados da Ingazeira (PE), propuseram ao concílio a ordenação de homens casados.
Porém, a proposta foi vetada por Paulo VI, que além de não permitir o discurso dos brasileiros durante a plenária, engavetou o pedido, jogando-o para o “arquivo morto” do concílio. O texto que continha a solicitação dos bispos, considerado desaparecido por quase 50 anos, foi resgatado pelo historiador brasileiro José Oscar Beozzo. Excluído das atas conciliares oficiais, o documento foi encontrado entre as prateleiras empoeiradas do arquivo secreto do Vaticano.
Ao descobrir que quase 43 bispos brasileiros eram favoráveis à abertura e recebiam a apoio de vários participantes do concílio, Paulo VI interviu. O pontífice impediu que o assunto fosse debatido durante o concílio e assumiu a questão para si, publicando a encíclica Sacerdotalis Caelibatus, em 1967, na qual reforça a lei do celibato sacerdotal para a igreja latina.
Nos sínodos de 1971 e 1990, realizados em Roma, os bispos brasileiros, dentre eles dom Aloísio Lorsheider, levaram adiante a proposta, mas sem sucesso. O tema também foi para o centro do debate em muitas assembleias da CNBB, mas retirado das atas antes de ser enviado a Roma, por medo de represálias por parte da Santa Sé.
Possibilidades para hoje
Papa Francisco teria dito aos bispos americanos, recebidos por ele às vésperas da publicação do documento sobre a Amazônia, “que a reflexão sobre os padres casados seria pauta de um discernimento futuro”. Uma porta aberta à possibilidade de, mais à frente, averiguar se uma licença especial para celebrar missas e atender confissões poderia ser concedida aos diáconos permanentes que já atuam na região.
Preocupado com a polarização que se manifesta em vários setores da igreja, o pontífice preferiu esquivar-se dos temas mais polêmicos. Uma manobra para dar ênfase às pautas ambientais e pôr um fim, de uma vez por todas, a essa “guerra de torcidas” em torno de questões disciplinares. Por outro lado, era de se esperar que o papa não abordasse a questão, uma vez que mudanças complexas desse tipo só podem acontecer por “vias jurídicas”, não através de um documento pastoral.
*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.
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