Francisco publica documento no qual dá um parecer definitivo sobre Sínodo Especial sobre a Amazônia, realizado em outubro de 2019. E diz que 'território é de todos'.

Papa usa trajes indígenas em Puerto Maldonado, no Peru: defesa aos nativos. (Cris Bouroncle / AFP)
Mirticeli Medeiros*
A tão esperada exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, de papa Francisco, foi publicada nesta quarta-feira, 12, no Vaticano. Depois de uma série de especulações em torno dos temas mais polêmicos debatidos durante o sínodo, um desfecho que agradou - e muito - a ala conservadora. Francisco disse não aos padres casados para a região e pediu, em vez disso, “que se reze pelas vocações”, de modo que o território amazônico receba um maior suporte espiritual. E fez um apelo aos bispos para que incentivem “os padres com vocação missionária a se transferirem para a Amazônia”. No discurso de encerramento do sínodo, em 27 de outubro, o papa disse se incomodar com os padres sul-americanos que se transferem para a Europa e para os Estados Unidos enquanto as regiões mais carentes do planeta padecem com a falta de sacerdotes.
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Apesar de sinalizar que é possível refletir sobre um ministério especial para a amazônia e conceder a alguns leigos uma autorização especial para administrar alguns sacramentos em regiões isoladas do território, Francisco exclui qualquer outro tipo de abertura. O pontífice deixa claro que somente ao padre oficialmente ordenado segundo a tradição canônica ocidental, “representante do Cristo cabeça”, cabe celebrar missa e atender confissões. Dessa forma, ele impede que homens casados recebam esse tipo de licença, contrariando as expectativas de muitos padres sinodais.
“Não se trata somente de facilitar uma maior presença dos ministros ordenados que podem celebrar a Eucaristia. Isso seria um objetivo muito limitado se não tentarmos também promover vida nova nas comunidades. Necessitamos promover o encontro com a palavra e a santidade através dos vários serviços laicais”, acrescentou.
Diaconisas
As mulheres que atuam na região também tiveram que se conformar com uma resposta não muito satisfatória. Diferente do documento final do sínodo, publicado ao final da assembleia, em outubro, papa Francisco sequer citou a criação de uma nova comissão para estudar o diaconato feminino. Em vez disso, identificou os riscos de “se promover uma clericalização das mulheres”. Segundo ele, tal abertura não contribuiria para uma autêntica promoção da mulher nos ambientes eclesiais.
“Isso nos convida a alargar o olhar para evitar reduzir nossa compreensão da Igreja através de estruturas funcionais. Esse reducionismo nos leva a pensar que dar às mulheres um status e uma participação maior na Igreja só é possível dando acesso à ordem sagrada”, completou.
“Amazônia é nossa”, mas não deve ser “internacionalizada”
O papa fez questão de frisar, já no início do documento, que o texto escrito por ele tem o objetivo de gerar conscientização. Sem rodeios, ele disse que “pretende despertar afeto e preocupação por essa terra que também é nossa”, convidando o mundo a “reconhecer a Amazônia como um mistério sagrado”. E completou dizendo que a reflexão em torno do território é um impulso para que se crie um movimento global de mobilização pela preservação de outras regiões do planeta.
O papa sustenta a tese da comunidade científica sobre a impossibilidade de reflorestamento do território por causa das peculiaridades do solo. De acordo com especialistas, a desertificação da região, no caso, provocaria danos ambientais irreversíveis para o planeta. Seguindo esse parecer, o pontífice destaca que a Amazônia “funciona como um grande filtro de dióxido de carbono capaz de evitar o aquecimento da terra”. Diante disso, ele diz que “o interesse de algumas poucas empresas poderosas não podem estar acima do bem da Amazônia e da humanidade inteira”.
Entrando no debate que provocou um choque diplomático entre o Brasil e alguns países europeus no ano passado, Francisco disse “que por trás dos empresários e políticos locais, estão os enormes interesses internacionais”. E concluiu que a solução para isso não está na “internacionalização da Amazônia”, mas na eficácia das medidas adotadas pelos governos nacionais que “têm o dever de preservar o ambiente e os recursos naturais de seus países”.
Em outra parte do texto, ele chega a dizer que a Amazônia, há muito tempo, vem sendo cercada por uma “mística de exploração”, a qual provocou uma degradação ambiental sem precedentes. Para ele, muitos governos locais “acabaram com a floresta com a desculpa de promover o desenvolvimento”. E que, diante disso, “os mais fracos não tiveram como se defender”.
Apoiar os índios: dever e dívida histórica
O pontífice afirmou que lutar pela dignidade dos mais pobres, sobretudo dos povos originários, é um dos “sonhos” que nortearam a composição do texto papal. E usou o termo “colonização” para se referir à extração de minério - seja ela legal ou ilegal. Segundo ele, a prática “tem dizimado povos indígenas, ribeirinhos e afrodescendentes”. E disse que os índios “não são uma raça selvagem que deve ser domesticada”, contrapondo-se, mais uma vez, à ferida histórica que envolve o processo de colonização do novo mundo no século 16.
“Os indígenas foram vistos como intrusos e usurpadores. Suas vidas, suas inquietudes, sua maneira de lutar e sobreviver não interessavam. Os consideravam mais como um obstáculo do qual se livrarem em vez de considerá-los seres humanos dotados da mesma dignidade que qualquer outro e com direitos adquiridos”, denunciou.
Tomando uma expressão bíblica, o papa também ressaltou que, muitas vezes na história da Igreja, “o trigo se misturou com o joio”, reconhecendo que nem sempre os missionários católicos “caminharam lado a lado com os oprimidos”. Admitiu sentir vergonha por causa da omissão de muitos religiosos durante o processo de colonização das américas e pediu perdão “não só pelas ofensas da própria Igreja, mas pelos crimes contra os povos originários e as atrocidades e crimes que praticaram contra a Amazônia”.
Para quem acompanhou o sínodo no ano passado, sabe que parte da imprensa internacional insistiu no tema do infanticídio indígena, algo que irritou muitos participantes da assembleia. Durante o encontro, muitos deles denunciaram “a ignorância de muitos” em relação ao estilo de vida de muitas etnias amazônicas. Ciente dessas controvérsias, o papa pediu “para evitar generalizações injustas, discursos simplistas e conclusões feitas a partir das próprias estruturas mentais”.
“Um crime”, diz papa sobre invasão de terras demarcadas
Na exortação, Francisco também abriu espaço para a denúncia, fazendo duras críticas aos modelos de desenvolvimento que atuam na região e às autoridades que permitem sua instalação. Chamou de “injustiça e crime” os empreendimentos nacionais e internacionais que ameaçam a vida na Amazônia em todas as suas expressões. E acrescentou que o problema está em “não respeitar os direito dos povos originários sobre o território e sua demarcação”, os quais - de acordo com ele -, “têm direito à autodeterminação e a serem consultados previamente” antes de qualquer atividade de extração ou cultivo.
“Quando algumas empresas sedentas de lucro fácil se apropriam dos territórios e chegam a privatizar até a água potável, ou quando as autoridades dão acesso livre às madeireiras, a projetos de mineração e petrolíferos e outras atividades que acabam com a floresta e contaminam o ambiente, se transformam as relações econômicas e se transformam em um instrumento que mata”, disse.
A colocação do papa aparece em meio às recentes afirmações do presidente Jair Bolsonaro em relação à demarcação de terras e a criação do “Conselho da Amazônia”, que será coordenado pelo vice-presidente da república, Hamilton Mourão. Apesar do papa não citar nenhuma autoridade política no texto, chama de “diágnósticos” os problemas que foram identificados pelos bispos em relação à floresta.
Igreja de rosto amazônico
Um outro tema bastante repercutido durante o sínodo foi a criação de uma Igreja de “rosto amazônico”. Os bispos pediam uma maior inculturação da fé católica nesses territórios, sugerindo ao papa a estruturação de um rito próprio que respeitasse a tradição das várias etnias. Sobre a questão, o papa dedicou o quarto capítulo documento, dizendo que a Igreja local, chamada a “lutar por todos, lado a lado, não se envergonha de Jesus Cristo”. Uma resposta do pontífice a quem acusou o sínodo de promover uma espécie de sincretismo religioso. “A autêntica opção pelos mais pobres e esquecidos, ao mesmo tempo que nos move a libertá-los da miséria material e a defender seus direitos, implica propor-lhes a amizade com o Senhor”, reiterou.
No entanto, Francisco apoia a incorporação de alguns elementos da cultura indígena dentro da liturgia, lembrando que o Concílio Vaticano II já havia proposto esse tipo fusão. Isso permitiria – diz o papa – reunir na liturgia “elementos próprios da experiência dos indígenas e seu íntimo contato com a natureza, além de estimular expressões autóctones em cantos, danças, ritos, gestos e símbolos”.
O papa disse ainda que a evangelização daqueles que atuam na Amazônia não pode se restringir a uma “mensagem social”, reiterando que se deve lutar pela justiça e dignidade dos povos “sem ocultar-lhes que tudo é feito porque se reconhece Jesus Cristo”. Apesar de estar a par do avanço do pentecostalismo na região – outra preocupação levantada pelos bispos durante o sínodo –, o papa preferiu ser cauteloso.
“A inculturação do Evangelho na Amazônia deve integrar melhor o social com o espírito, de maneira que os mais pobres não necessitem buscar fora da Igreja uma espiritualidade que responda aos anseios de sua dimensão transcendente”, escreveu.
Documento papal é “ex novo” e não repete texto do sínodo
Já no início da exortação, o papa destaca que apesar de ter acolhido todas as sugestões apresentadas pelos padres sinodais, preferiu “não abordar todas as questões, já que a intenção “não foi a de substituir o documento final nem de repeti-lo”. Ele fez o que já, de certa forma, se esperava: aprofundou alguns temas da sua encíclica ecológica Laudato Si, publicada em 2015.
“Desejo somente trazer uma breve reflexão que encarne na realidade amazônica uma síntese de algumas grandes preocupações que já expressei nos meus documentos anteriores e que ajude e oriente a uma harmoniosa, criativa e frutífera recepção em todo o caminho sinodal”, ressaltou.
De linguagem simples, o texto de caráter sócio-ambiental é um dos mais populares e diretos já produzidos por Francisco. Com citações dos escritores Euclides da Cunha, Vinícius de Moraes e Pablo Neruda, o documento, de 42 páginas, foi dividido em 4 partes que exprimem “os quatro grandes sonhos do papa” em relação à Amazônia.
Deixando de lado as questões doutrinais e disciplinares, Francisco priorizou temas ligados à ecologia, direitos humanos e vida eclesial na Amazônia, reiterando que o território é um patrimônio da humanidade a ser salvaguardado. E fez uma série de ataques contra as posturas assumidas por alguns governos dos países que compõem a região.
Para muitos padres sinodais, foi melhor o papa não ter tocado em certos temas, já que a insistência em assuntos ligados a padres casados e diaconisas, muitas vezes ofuscaram as pautas mais urgentes. Alguns participantes chegaram a denunciar uma manobra política, travestida de “zelo católico”, com o intuito de desviar o debate sobre a degradação da Amazônia. Em outras palavras, venceu a mensagem sobre a ecologia integral de papa Francisco. Sendo assim, podemos dizer que essa exortação complementa a Laudato Si, dando continuidade à revolução que a essa encíclica provocou. O líder religioso lança um apelo para que o mundo se abra a uma verdadeira “conversão ecológica” a partir da Amazônia. E isso não é pouco.
Edição revisada para evitar cisma?
Mas há também o outro lado da história. Um questionamento levantado pela imprensa italiana é se houve uma intervenção papal de última hora após a conclusão do texto. A primeira versão foi concluída no dia 15 de janeiro e entregue aos padres sinodais antes de ser traduzida. Dois dias depois foi publicado o polêmico livro do cardeal Robert Sarah que contou com a colaboração de Bento XVI, no qual ambos se manifestaram sobre importância de manter a regra do celibato sacerdotal.
A publicação da exortação estava marcada para o final do mês de janeiro, mas só aconteceu quase 15 dias depois da data prevista. Agora resta a dúvida se o texto passou por nova revisão por causa da pressão feita pelos que se opunham à ordenação de homens casados ou se o atraso aconteceu por questões protocolares. Porém, de acordo com a agência Catholic News Service, os bispos americanos receberam o rascunho do documento em dezembro de 2019. De acordo com os prelados, já na primeira versão do texto o pontífice foi contrário à proposta de ordenar homens casados.
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*Mirticeli Dias de Medeiros é jornalista e mestre em História da Igreja pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Desde 2009, cobre o Vaticano para meios de comunicação no Brasil e na Itália e é colunista do Dom Total, onde publica às sextas-feiras.
domtotal.com
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