
Com o carnaval chegando, é bem provável que o leitor ou leitora deste texto, caso seja evangélico, já tenha recebido algum convite, ou está na iminência de participar, de um retiro de carnaval em algum sítio próximo à cidade. Essa prática ainda continua muito comum em diversas igrejas. São os chamados acampamentos de qualquer coisa, seja ela carnaval, festa junina, férias, juventude etc.
A princípio, não há nada de errado nesse tipo de atividade. Como alguém que cresceu dentro do movimento protestante, tive a oportunidade de ir a muitos desses eventos e foram muito úteis para estreitar laços de amizade, conhecer melhor outras pessoas, ouvir boas pregações, degustar boas e más comidas (visto que sempre dependia de quem as fazia) e tantas outras boas lembranças que esses momentos trazem.
Contudo, algo que me chama a atenção nesses acampamentos – que acredito que seja a pior parte deles – é a motivação com que muitos são organizados, principalmente no carnaval. Em grande parte, a motivação é “fugir do mundo”, ir para um lugar para “buscar a Deus” sem se contaminar com a “devassidão” que ocorre nas ruas ou, ainda, para não cair em alguma tentação, tomado pelas más influências que desejam levar para a “gandaia” dessa época.
Essa motivação é imbuída de uma visão totalmente estereotipada do que vem a ser o carnaval, influenciada pelo puritanismo que perpassa grande parte do movimento evangélico. Ela também traz, para grande parcela de adolescentes e jovens que frequentam esses acampamentos, uma compreensão errada do que é o mundo do qual falam as Escrituras.
Estes campistas passam a caracterizar como mundano tudo aquilo que não pertence ao campo eclesial. Posteriormente isso se presta à adjetivação, bizzara, de “músicas do mundo”, “roupas do mundo”, entre outras já presentes nos jargão evangélico presente em diversas comunidades cristãs.
Ao fazer isso, porém, aumenta ainda mais a tendência de um cristianismo não encarnado, ou seja, que não compreendeu que ser sal da terra como cristão consiste justamente em se fazer presente onde o mundo precisa de tempero e atitudes diferentes. Tratar o mundo como algo ruim mascara aquilo que o texto bíblico chamou de sistema mundano, a saber, um sistema no qual o interesse próprio está em primeiro lugar, o altruísmo é considerado insanidade e o olhar para os marginalizados é visto como sem sentido. Sendo assim, compreender que o mundo é diferente do sistema mundano se torna fundamental para que se possa viver um evangelho que seja realmente boa nova para aquele e aquela a quem atinge.
Deus nunca desejou o afastamento do mundo, mas sempre foi contra o sistema mundano, sendo Jesus a prova cabal disso. Deus está no mundo em Jesus Cristo, chama-o para perto de si, caminha com ele e seus marginalizados e, ao mesmo tempo, condena o sistema mundano que faz com que o ser humano pense somente em si e maltrate o seu próximo por causa do seu gênero, raça, cor, estereótipo e religião.
Tendo essa clareza, não é difícil de perceber que, muitas vezes, esse sistema mundano se mostra dentro do próprio acampamento, enquanto o verdadeiro evangelho, muitas vezes, está nos blocos de carnaval.
Isso não quer dizer que se devem parar todos os acampamentos e retiros de carnaval e que eles só trazem coisas ruins para a vida cristã. Isso não é verdade. Contudo, enquanto a motivação dos acampamentos e retiros for o afastar os jovens e adolescentes do mundo para não se contaminar com ele, estaremos formando uma juventude que não compreendeu o real sentido da encarnação e que repetirá um evangelho puritano e estereotipado que nada tem a ver com a proposta de Jesus.
*Fabrício Veliq é protestante e teólogo. Doutor em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte (FAJE), Doctor of Theology pela Katholieke Universiteit Leuven (KU Leuven), Bacharel em Filosofia e Licenciado em Matemática (UFMG) E-mail: fveliq@gmail.com
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