Em um país que mata uma mulher a cada 7 horas, questionar tal situação se faz urgente

A mulher não é discípula de segunda categoria. Jesus acreditou nelas, se confiou a elas, e confiou a elas seu Evangelho. Faz delas transmissoras da missão que havia recebido do Pai. (Lucia/Unsplash)
Élio Gasda*
O Brasil é o país em que mais se mata mulheres no mundo. A causa? Por ser mulher. Esse tipo de crime, baseado no gênero, é considerado hediondo. Uma mulher é assassinada a cada 7 horas. A esse dado soma-se mais de dois mil órfãos todos os anos no Brasil (Fórum Brasileiro de Segurança Pública). São as vítimas invisíveis do feminicídio. Mas foi o “pum” perfumado e colorido do palhaço e a roupa das três Marias que tomaram de assalto as redes sociais na semana passada. Mulheres foram expostas e ridicularizadas. Jornalistas foram atacadas pelo próprio presidente deste país de brucutus. O país vive a era da estupidez.
Sororidade? Do latim, soror, significa irmã, originando o sentido de irmandade entre as mulheres. Será? Ainda estamos engatinhando nesse sentido. No senado muitas mulheres saem em defesa de outras, mas também existem aquelas que defendem a misoginia. No dia 8 de março, em 70 cidades, as mulheres foram as ruas para protestar contra toda a forma de agressão. O Brasil tem 5.570 municípios.
Talvez seja unânime entre as mulheres: não há o que comemorar. Muitas ainda comungam da ideia “menina veste rosa e menino veste azul”. Sempre a dicotomia. No cotidiano, gênero pode até ser algo de reconhecimento instantâneo. Mas essa crença de que distinção de gênero é coisa “natural”, não é verdadeira e por isso as pessoas se escandalizam quando alguém foge dos padrões.
A ideia de comportamento adequado a cada sexo está no imaginário social. Como definiu Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se”. O princípio se aplica também aos homens. A legislação, pais, mães, apresentadores(as), políticos, padres, publicitários(as), proprietários(as) de mega indústrias, diretores(as) financeiros, donos(as) do mercadinho da esquina, todos construindo gênero e ajudando a criar e expor diferenças entre masculinidade e feminilidade. A desigualdade está por toda parte.
É urgente discutir desigualdade de gênero. Por mais que as mulheres tenham conquistado direitos, elas ainda não conseguem reconhecimento em muitos setores. O Relatório de Desigualdade Global de Gênero (2017) indica que houve um aumento das disparidades entre homens e mulheres no planeta. Menos de 2% das CEOs de instituições financeiras globais são mulheres. Só 30% dos pesquisadores do mundo são mulheres (ONU/Mulher). A continuar assim, a paridade entre homens e mulheres no mercado de trabalho só será alcançada daqui 257 anos (Fórum Econômico Mundial, 2019).
A participação das mulheres nas diferentes tradições religiosas também é insignificante. Alguns segmentos religiosos mantêm sua hierarquia patriarcal, como a Igreja. Em 2019 das 4.618 pessoas trabalhando no Vaticano, apenas 1.016 eram mulheres (Vatican News). Nenhuma delas com poder de decisão.
Sínodo? A palavra grega “syn-odós” significa caminhar junto. O verbo synodéo significa “fazer um caminho com alguém”. Os sínodos mais recentes revelam uma Igreja que não quer a companhia das mulheres. A presença feminina no Sínodo dos Jovens e no Sínodo da Amazônia foi ínfima. No primeiro, participaram 267 padres sinodais com direito a voto, entre cardeais, bispos, patriarcas e religiosos, e apenas sete freiras sem direito a voto. No Sínodo da Amazônia estiveram 180 padres sinodais com direito a voto. Nenhuma mulher. Por que? O gênero é impedimento? Como explicar uma Igreja que ignora a opinião de mais da metade de si mesma? Qual o futuro de uma Igreja sexista? Até quando reinará essa cultura do silêncio quando se trata da presença da mulher? Até elas se cansarem de não serem ouvidas?
Por que os homens não se tornam um incômodo nos lugares onde as mulheres são discriminadas? São muitos os lugares. Muitas veem na Igreja o maior obstáculo ao próprio reconhecimento e dignidade. Desiludidas, vão embora. Se decidem ficar, não deveriam permanecer quietas. Subir o tom de voz é a única maneira de mudar as coisas. “O clericalismo, essa peste na Igreja” (papa Francisco) somente será superada com a força das mulheres.
A mulher não é discípula de segunda categoria. Jesus acreditou nelas, se confiou a elas, e confiou a elas seu Evangelho. Faz delas transmissoras da missão que havia recebido do Pai. Não se pode deduzir nenhum princípio de exclusão a partir das palavras ou dos exemplos de Jesus.
“É próprio da mulher tomar a peito a vida. A mulher mostra que o sentido da vida não é continuar a produzir coisas, mas tomar a peito as coisas que existem” (papa Francisco). Somente as mulheres podem subverter o poder patriarcal sobre o qual a tradição construiu a instituição eclesiástica. Não é este o propósito de uma mulher e de sua boca que foi profetizado: "Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes"(Lc 1,52)?
“...e assim, seja lá como for, vai ter fim a infinita aflição e o mundo vai ver uma flor brotar do impossível chão” (Chico Buarque e Ruy Guerra).
*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na Faje. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).
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