sábado, 25 de abril de 2020

Emaús: recordar a história, sentir a história

Reflexão do Evangelho do 3º domingo de Páscoa (Lc 24,14)
É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu 'tempo' em história e seu 'espaço' em encontro
É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu 'tempo' em história e seu 'espaço' em encontro (Lumo Project/ FreeBibleImages)
Adroaldo Palaoro*

"Conversavam sobre todas as coisas que tinham acontecido" (Lc 24,14)

Nossa vida é parte da História, e esta, por sua vez, é formada pelas histórias de nossas vidas, pontilhadas e marcadas pela presença de outras muitas histórias. A História, por si mesma, é provocante e nos fascina; ela tem um estranho poder de sedução. Nós nos reconhecemos nas histórias da História; isso nos facilita tomar consciência de onde estamos e quem somos, e nos ajuda a assumir decisões mais maduras frente aos desafios e surpresas que a vida nos reserva.

A vida só tem sentido quando se torna História, isto é, quando não se limita a repetir o passado, mas quando engendra algo novo e diferente a partir de uma História internalizada e saboreada.

É somente no nível mais profundo que o ser humano transforma seu “tempo” em história e seu “espaço” em encontro.

No relato dos “discípulos de Emaús”, o encontro com o ressuscitado nos ajuda a “ler” a História, pessoal e coletiva, de uma maneira diferente e instigante. A história triste e fracassada dos dois discípulos adquire um novo sentido a partir da luz dos relatos bíblicos que o peregrino traz à memória.

A partir da “memória bíblica”, eles são movidos a “reler” a própria história com novos olhos, reconstruindo-a, dando a ela um novo significado e deixando-se impelir a escrever uma nova história.

Reze conosco em Meu dia com Deus
Marcados pelo dinamismo da ressurreição, cremos profundamente na força evocativa e transformadora da história; encontrar-nos com ela significa caminharmos para o interior do mistério da mesma história; significa também deixar-nos questionar, iluminar e mobilizar por ela.

Com isso, reiniciamos um novo caminho de aventura, que consiste não só em receber e celebrar a história, mas atualizá-la, reescrevê-la, confirmá-la... Uma história com rosto de futuro... e um futuro inspirador.

A história se revela, assim, como um húmus vivente, uma atmosfera de graça, uma torrente subterrânea na qual se nutre todo o processo do seguimento de Jesus. Não é fora da História e de sua história que o(a) seguidor(a) de Jesus pode reconhecer a vontade de Deus e escutar seu apelo; porque “Deus se fez História” e só o Verbo Encarnado, agora ressuscitado, pode ser “o verdadeiro fundamento da história” (S. Inácio). A partir do Jesus ressuscitado, a história de cada um e da humanidade inteira adquire uma nova luz e um novo sentido e se abre a um vasto horizonte de compromisso.

A história pessoal do cristão e a história do mundo tornam-se, portanto, o “lugar” habitual da experiência de Deus, a montanha da misteriosa sarça ardente que não se consome.

Fazer memória das histórias não significa querer mudá-las, mas adquirir nova perspectiva, um novo olhar. Com freqüência, esta perspectiva nos ajuda a entender melhor nossa situação atual. Trata-se da “memória agradecida”: tudo tem sentido, nada é desperdiçado...

Quando a história é contada e recontada, acontece a cura da memória. Em lugar de uma história opressiva e pesada, passamos a contar com uma “história redentora”. O momento da graça é precisamente esse: quando, de repente, a perspectiva muda, encontramos um “novo sentido” e surge uma saída do emaranhado de lembranças, emoções e histórias de fracassos e decepções. Isso aparece claramente no relato evangélico deste domingo.

Na narrativa, o forasteiro ajuda os dois discípulos a “desatar” o nó de suas lembranças traumáticas e a compor uma nova história. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se pesada e eles procuram fugir de Jerusalém e da terrível lembrança da morte do mestre. Mas a história os acompanha na estrada. Não param de repeti-la. Mesmo quando dizem as palavras certas, a intensidade emocional da experiência não lhes permite ouvir a história de uma perspectiva diferente.

Enquanto caminhavam, conversavam e discutiam com tal intensidade que nem perceberam a aproximação do forasteiro. Falar de maneira tão intensa de uma experiência recente demonstra que ela teve forte impacto na vida deles, mas o significado desta dura experiência está envolvido numa obscuridade.

Para eles, a história não faz sentido. A história de Jesus, com seu fim decepcionante, tornou-se agora traumática. Esforçam-se para encontrar a única coisa que vai ajudá-los a superar a dor, transformar a lembrança, permitir que continuem suas vidas, refugiando-se no passado.

Foi preciso discernimento por parte do forasteiro para libertar seus discípulos daquela interpretação nociva da história. Ele reorienta a história sem diminuir a gravidade do que acontecera.

O forasteiro não só reconta a história de Jesus, mas também tem de remodelar todas as histórias das relações de Deus com Israel. A “história pessoal” é “recontada” e considerada no contexto de uma história muito mais ampla; há uma ligação profunda entre todas as histórias, constituindo-se na grande História da Salvação. A descoberta desta nova perspectiva acontece como momento de graça que desce sobre eles.

A história recontada começa a reconstruir a humanidade deles, a esperança vai retornando, os corações vão se aquecendo, a alegria vai surgindo em seus rostos... O forasteiro, ao criar um círculo de confiança, abriu “espaço terapêutico” para que os discípulos contassem sua história em segurança e começassem a realimentar uma nova esperança. Foi criado um ambiente de hospitalidade que culminou na ceia.

É nesse ambiente que a taça do sofrimento transformou-se na “taça da esperança”. Das cinzas brotaram a esperança, o entusiasmo e os sonhos... e eles apressaram-se a voltar para Jerusalém a fim de partilhar a descoberta de um novo sentido da história.

A partir do fundamento da História (Jesus Cristo), contemplamos nossa própria história (pessoal e institucional): história que deve ser observada, lida, discernida. Tal experiência nos ajuda a abrir os olhos para a novidade inesgotável da vida, nos faz “aquecer o coração”, desperta em nós o desejo e mobiliza todas as nossas capacidades para um compromisso de ação transformadora na história pessoal e coletiva.

A História está sempre aberta, desafiando-nos, arrancando-nos de nosso imobilismo, despertando nossa criatividade para ser reescrita de uma maneira diferente.

Nossa história pode ser poderosa motivadora de mudança; ela nos levanta quando estamos dispersos e sem direção; ela não é apenas relato do passado, mas parte viva do que somos agora; ela nos traz para “casa”, para nossa própria integridade e identidade. 

Assim, a experiência pascal significa “conhecer”, “sentir” e “amar” a nossa própria história. É uma verdadeira experiência de ressurreição. Só assim a história se converte em “Epifania” (manifestação) de Deus e nos permite compreender, acolher e integrar tudo o que acontece, dentro e fora de nós.

Este é um tempo de graça: o encontro vivo da “história” celebrada com o compromisso de construção da “nova história”, mais ousada e mais criativa. Trata-se de um momento tão fortalecedor e jubiloso que estremecemos reverentes diante do que celebramos. Sem a luz da ressurreição, nossa história, pessoal e coletiva, se reduz a eventos opacos, vazios, tristes...

Com a ressurreição, a história se ilumina, se transfigura e nos desafia. A ressurreição plenifica, dá sentido e costura os eventos, constituindo-se em “História de Salvação”. Ela nos faz ver o que todo mundo vê, mas de um “modo” diferente: vemos mais longe, vemos além, vemos mais fundo...

Texto bíblico: Lc 24,13-35

Na oração

Diante da história pessoal e social, sinto-me desafiado? Paralisado(a)? com medo? Inquieto(a)?
Quanto de esperança carrego em meu interior?
O que me faz abrasar o coração diante de uma história que parece um fracasso?

*Adroaldo Palaoro é padre jesuíta e atua no ministérios dos Exercícios Espirituais

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