sábado, 20 de abril de 2013

A jangada de pedra e a lusofonia


Um comentário sobre a obra "A Jangada de Pedra", de José Saramago, facilitará a leitura desta análise, caso o leitor ainda não o haja conhecido

Publicada em 1988, traz acontecimentos insólitos, entre os quais, o maior de todos eles é o "descolamento" da Península ibérica do restante do continente europeu. Assim, feita "jangada de pedra", a Península, ao mesmo tempo, espaço geográfico e protagonista da narrativa, navega, hesitante, pelo Atlântico, em longa viagem, buscando local "mais adequado" para ancorar. A personificação da península é a imagem criada pelo romancista para revelar o conteúdo ideológico que dá sustentação temática à obra. Saramago recorreu ao fantástico, ou realismo mágico, para envolver o leitor numa trama intrigante através da qual vai tematizando o verdadeiro e maior objetivo do romance: refletir sobre questões político-sociais, tais como: europeísmo, iberismo e lusofonia. O enredo é, em parte, uma metáfora de lusofonia, uma vez que temos quase todos os elementos constituintes da mitologia lusófona: a navegação, o gesto heroico, pioneiro e desbravador, além da exaltação de outros valores lusitanos como a retomada do mito do 5º. Império e a valorização da própria língua portuguesa, em toda a superfície narrativa do romance, apresentada com seus traços genuínos e suas expressões típicas.

A jangada lusófona

Todas as "ações" da "jangada" apontam para um possível futuro exitoso que se inicia com o gesto heroico do descolamento. Esse acontecimento remete-nos aos tempos áureos da navegação portuguesa. Este "gesto" da "jangada" encapsula os seguintes valores: bravura, ousadia e pioneirismo, que são marcas características do passado de glória do povo lusitano. A ideia da "volta ao Atlântico" é imagem recorrente nas cenas de descrição dessa viagem surreal, e a Península, metaforizada em jangada, evoca a imagem das antigas caravelas que se lançaram ao mar, e torna-se o elemento responsável pelas alusões às grandes navegações do passado, fato descrito pelo narrador como sendo de grande magnitude: (Texto I)

Elementos recorrentes

São inúmeras referências à grandeza da navegação lusitana e o narrador recorre a palavras de um poeta português para expressá-la, o que entendemos como mais uma valorização de elemento da cultura lusitana, qual seja: a literatura: (Texto II)

Isto encontra reforço nas palavras de Cunha (2009, p. 75), quando ele, ao referir-se à Jangada, a vê como "uma espécie de reescrita do mito lusófono, no caso transformado em ibérico, da Lusitânia como centro de um mundo alternativo dominante." Fundamentais estas palavras para que, assim, se entenda a questão da lusofonia no romance em estudo. O desgarramento da jangada simboliza também, de modo expressivo, um gesto prático que expressa o orgulho do povo português frente às discriminações sofridas por eles na Europa.

Ao se desgarrar do continente, os ibéricos, fortemente representados aqui pelos portugueses, estariam declarando o seu desejo de ganhar autonomia em relação à Europa; o que vai ao encontro de Cunha, a "Lusitânia como centro de um mundo alternativo dominante". Se observarmos detalhes da trama romanesca, constataremos que esta pode ser visto também com uma expressão de lusofonia não só no momento em que trás à tona os maiores valores da cultura lusitana, mas também e, ao mesmo tempo, de modo simbólico, manifesta um protesto contra o europeísmo. O narrador documenta o desgarramento da Península e chega a se afastar do curso do enredo, em breve reflexão metalinguística, dada a dramaticidade do momento: (Texto III)

Um relevo

O narrador, aludindo à questão geográfica, menciona a África e a América Latina como culturas irmãs, sugestão esta feita simbolicamente através da geografia desses continentes em relação à península. A ideia do "encaixe" autoriza-nos a pensar em lusofonia. Leiamos duas passagens: (Texto IV). Tais sugestões em relação ao desenho geográfico da Jangada: "parece gêmea dos dois continentes que a ladeiam", sugerem a existência de muitas proximidades entre os povos ibéricos, latinos e africanos. Entre estas, podemos destacar as línguas, espanhola e portuguesa; mas, principalmente, a portuguesa. Eis a possibilidade de inferirmos sobre a importância da questão linguística como um dos elementos definidores do desfecho da trama.

FIQUE POR DENTRO

A língua e a construção da identidade

A língua é o principal elemento unificador do mundo lusófono, torna-se importante também destacar, como representação da lusofonia, o registro linguístico que o autor faz na obra, não só como ferramenta da narrativa, mas como registro do falar lusitano, em expressões como: "alguém está a lavar as mãos numa bacia"; "...Também não faltam quedas-d´água, e das mui belas e altas,"; "Foram examear os Pirinéus orientais,"; "quiseram desviar os fluxos do trânsito, era tarde de mais,"; "e usar altifalantes para melhor se ouvirem,"; "olhavam sem perceberem o que se estava a passar,". Alguns provérbios: "Todo pássaro come trigo, só o pardal é quem paga."; "deitar tarde e cedo erguer, saúde não dá, mas alonga o viver."; "tantas vezes vai o canto á fonte que por lá lhe fica a asa."; "Água mole em pedra dura tanto dá até que fura"; "O homem põe, o cão dispõe."; Quem não viu Lisboa, não viu coisa boa, bendito seja Deus que nos deu as rimas e não nos retirou os arrimos."

Trechos

TEXTO I

... mas a península rodava majestosa no meio do Atlântico, e à medida que ia rodando, tornava-se cada vez mais menos reconhecível aos nossos olhos, (...) Na verdade, nada podia substituir a imagem recolhida e transmitida por satélite, a fotografia de grande altitude, então, sim, tinha-se uma adequada ideia da magnitude do fenômeno. (SARAMAGO, 1988, p. 288).

TEXTO II

Até a esta altura, quando já vão escritas tantas páginas, a matéria da narrativa tem se resumido à descrição de uma viagem oceânica, ainda que não de todo banal, e mesmo neste dramático instante em que a península retoma o seu caminho, agora na direção do sul, ao tempo que continua a rodar em torno do seu imaginário eixo, por certo não saberíamos ultrapassar e enriquecer o simples enunciado dos fatos se não viesse ajudar-nos a inspiração daquele poeta português que comparou a revolução e descida da península à criança que no ventre da sua mãe dá a primeira trambolha da vida. O símile é magnífico... (SARAMAGO, 1988, p. 304)

TEXTO III

É que, neste ponto fatal a mão hesita, como irá ela escrever, de plausível maneira, as próximas palavras, essas que tudo sem remédio irão comprometer, tanto mais que muito difícil se vai tornando já destrinchar, se tal se pode em algum momento da vida, entre verdades e fantasias. É que, calculamos o que suspenso ficou, por um grande esforço de transformar pela palavra o que talvez só pela palavra possa vir a ser transformado, chegou o momento de dizer, agora chegou, que a Península Ibérica se afastou de repente, toda por inteiro e por igual, dez súbitos metros, quem me acreditará, abrindo-se os Pirinéus de cima a baixo como se um machado invisível tivesse descido das alturas, introduzindo-se nas fendas profundas, rachando pedra e terra até o mar,... (SARAMAGO, 1988, p. 34).

TEXTO IV

Um dos conselheiros observou que o novo rumo, vistas bem as coisas, não era assim tão mau, Eles estão a descer entre a África e a América Latina, Senhor presidente, o rumo pode trazer benefícios, mas também pode agravar a indisciplina na região, [...] e a sua forma, inesperadamente para quem ainda tiver nos olhos e no mapa a antiga posição, parece gêmea dos dois continentes que a ladeiam. (SARAMAGO, 1988, p. 309/10).

HERMÍLIA LIMA
COLABORADORA*

*Professora da Unifor
Diário do Nordeste

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