Hans Küng*
Tradução: ADITAL

Evidentemente, o sistema da Igreja Católico-romana é muito diferente dos imperantes em Túnis e no Egito, para não falar de monarquias absolutas, como a Arábia Saudita. Em todos esses países, as reformas que houve até agora em geral não são mais do que concessões menores e, inclusive, estas, com frequência, encontram-se ameaçadas pelos que, em nome da tradição, se opõem a qualquer tipo de reformas progressivas. Na Arábia Saudita, na realidade, muitas das tradições têm somente um par de séculos de antiguidade. A Igreja Católica, no entanto, pretende basear-se em tradições que remontam a vinte séculos atrás, ao próprio Jesus Cristo.
Os esforços para reformar esse sistema, realizados pelos concílios reformadores do século XV, pelos reformadores protestantes e católicos do século XVI, pelos promotores da Ilustração e da Revolução Francesa nos séculos XVII e XVIII, mais recentemente pelos campeões de uma teologia liberal-progressista, nos séculos XIX e XX, somente obtiveram um êxito parcial. Inclusive, o Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965, apesar de que abordou muitas das preocupações expressadas por reformadores e críticos modernos, resultou diminuído na prática pelo poder da Cúria Pontifícia e não conseguiu impor mais do que algumas das mudanças reclamadas. Até o dia de hoje, a Cúria –que, em sua figura atual é uma criatura do século XI- é o principal obstáculo para qualquer reforma a fundo da Igreja Católica, a toda reconciliação sincera com as demais igrejas cristãs e as religiões mundiais, e a qualquer entendimento crítico e construtivo com o mundo moderno.
Para piorar as coisas, com o apoio da Cúria, sob os dois papas anteriores, aconteceu um retorno fatal às velhas atitudes e práticas absolutistas.
Será que Jorge Mario Bergoglio já se perguntou por que até agora, nenhum papa havia se atrevido a adotar o nome de Francisco? Esse jesuíta argentino de raízes italianas era muito consciente, em qualquer caso, de que ao eleger esse nome estava reavivando a memória de Francisco de Assis, famoso por destoar da sociedade do século XIII. Quando jovem, Francisco, filho de um rico comerciante de tecidos de Assis, levou a vida agitada e mundana típica dos jovens acomodados da cidade. De repente, aos 24 anos, várias experiências o levaram a renunciar à família, riqueza e carreira. Em um gesto dramático ante o tribunal do bispo de Assis, despojou-se de seus suntuosos vestidos e os jogou aos pés de seu pai.
Surpreende ver como o papa Francisco, desde o momento de sua eleição, optou claramente por um novo estilo totalmente diferente do de seu antecessor: já não usa a dourada mitra com joias, nem veste a capa vermelha debruada com arminho, nem calça os sapatos vermelhos feitos sob medida, nem leva o gorro vermelho com bordas de arminho, nem tampouco se senta no trono papal decorado com a tripla coroa, emblema do poder político dos papas.
Também é surpreendente a maneira pela qual o novo papa se abstém, conscientemente, de fazer gestos melodramáticos e de empregar uma retórica inchada; fala a linguagem das pessoas da rua, como faria um leigo, se Roma não tivesse proibido os leigos de predicar.
E surpreende como o novo papa ressalta seu lado humano: pediu às pessoas que rezassem por ele antes de abençoá-los; como qualquer outro cardeal, pagou de seu bolso a conta do hotel após sua eleição; mostrou sua solidariedade com os cardeais, viajando com eles no mesmo ônibus para regressar à residência que partilhavam e despedindo-se cordialmente de todos eles. Na Quinta-Feira Santa, foi a uma prisão para lavar os pés de jovens convictos, incluída uma mulher... muçulmana. Em tudo, está mostrando que é um homem com os pés na terra.
Tudo isso teria agradado a Francisco de Assis, e é exatamente o contrário de tudo o que defendia o papa coetâneo, Inocêncio III (1198-1216), o pontífice mais poderoso da Idade Média. Na realidade, Francisco de Assis representa a alternativa ao sistema romano que dominou a Igreja Católica desde o início do primeiro milênio. Que teria acontecido se Inocêncio III e seu entorno houvessem escutado a Francisco e descoberto de novo as exigências do Evangelho? Não há porque levar essas exigências tão ao pé da letra como fez Francisco; o que conta é o espírito que há por detrás delas. Os ensinamentos do Evangelho representam um poderoso desafio ao sistema romano: essa estrutura de poder centralizada, juridificada, politizada e clericalizada que tem dominado a Igreja de Cristo no Ocidente desde o século XI.
Assim, o que deveria fazer o novo papa? A grande questão que tem por diante é que postura adotar no referente a uma reforma séria na Igreja. Finalmente, ele realizará as reformas há muito tempo pendentes e bloqueadas nas últimas décadas? Ou deixará que as coisas continuem o curso que tomaram sob seus predecessores? Em ambos os casos, o desenlace é claro:
- Se embarca em uma trilha de reformas, encontrará um amplo apoio, inclusive além das fronteiras da Igreja Católica;
- Se continua com o atual cerceamento, o clamor do "levantai-vos e rebelai-vos” (o ‘Indignai-vos!’, de Stéphane Hessel) na Igreja Católica irá aumentar e incitará as pessoas a atuar por sua conta, a iniciar reformas "desde a base”, sem a aprovação da hierarquia e, em geral, contra qualquer tentativa de frustrá-las. No pior dos casos, a Igreja Católica viverá uma nova idade do gelo em vez de uma primavera; e correrá o risco de ficar reduzida a uma mera seita, com um elevado número de membros, sim; porém, sem nenhuma relevância social e religiosa.
No entanto, tenho fundadas esperanças de que as preocupações que expressem ‘A Igreja tem salvação?’ serão levadas a sério pelo novo papa. Usando a analogia médica que serve de motivo central ao livro, direi que a única alternativa que resta à Igreja ante o "suicídio assistido” é uma "cura radical”. Isso significa mais do que um novo estilo, uma nova linguagem ou um novo tom colegial. Significa levar adiante reformas radicais, durante muito tempo postergadas, da estrutura da Igreja, e revisar urgentemente as obsoletas e infundadas posições dogmáticas e éticas impostas por seus predecessores.
Adital
*Teólogo suíço, filósofo, estudou teologia e filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana
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