sexta-feira, 5 de julho de 2013

Seminário faz memória à atuação dos cristãos no processo de redemocratização do Brasil

Fotos: Jaime C. Patias 
O Centro Cultural de Brasília (CCB), acolheu nos dias 26 e 27 de junho, o Seminário Internacional Memória e Compromisso. O evento, que tem por objetivo relembrar a atuação dos cristãos no processo de anistia política e de redemocratização do Brasil durante o período de 1964 a 1988, é organizado pela Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Sobre o evento, confira abaixo, o artigo de Jorge Atilio Silva Iulianelli, assessor de KOINONIA- Presença Ecumênica e Serviço, Consultor da Comissão Nacional da Verdade (GT Igrejas e Ditadura).

Memória e Compromisso: vozes presentes de uma busca permanente

A Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CBJP), órgão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) propõe à sociedade brasileira uma reflexão contundente, de efeitos práticos e políticos renovadores. Em confluência com as ações de justiça de transição, que o governo brasileiro, em consonância com o mais profundo desejo da sociedade brasileira, ainda que tardiamente, está empreendendo, o Seminário Memória e Compromisso, é, também, uma contribuição das comunidades cristãs para o esclarecimento da verdade das ações opressivas e contrárias aos direitos humanos que foram empreendidas pelo Estado Brasileiro durante a ditadura civil‑militar.

A ditadura que se estabeleceu a partir do Golpe de Estado de 1964 não teria condições de manutenção sem que vários setores da sociedade brasileira a apoiassem, ainda que tivessem conhecimento que o regime ditatorial consumava alto custo em depredação dos direitos humanos fundamentais; e se colocava em plena contradição com os direitos econômicos, sociais e culturais do povo brasileiro. Não sem responsabilidade, setores das igrejas cristãs, também, foram esteio da ditadura militar e contribuíram para que aquele regime tivesse a extensão que possuiu.

O padre José Oscar Beozzo, neste Seminário, recordou um exemplo amargo. Durante uma das Assembleias da CNBB, na década de 1970, 10 bispos escreveram uma carta à Presidência da República, do governo golpista, solicitando intervenção dos militares na CNBB para deterem o que aquelas eminências chamaram de bispos comunistas. Fatos como tais indicam essa ambígua tensão daquele período.

Porém, e esta foi a principal marca da primeira atividade do projeto que se iniciou com o seminário, e ainda terá edições regionais, publicação de um livro e produção de DVD, significativos e relevantes setores das igrejas cristãs protagonizaram a mais contundente, extensa e popular resistência à Ditadura Civil-Militar. Esta resistência teve algumas marcas fundamentais.

Primeiramente e de forma profunda a mística libertadora, que nasce mesmo do coração de Deus que gera em suas entranhas a liberdade, como nos recordou a Ir. Márian Ambrósio, da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB). O grito por libertação não permitiu que nenhuma força opressora o silenciasse.

Em segundo lugar, este grito em favor da libertação, em profunda conexão e solidariedade com os pobres, preferidas e preferidos de Deus, tem um caráter ecumênico, e, por isso também, a CBJP convidou para participar e ajudar nas reflexões do Seminário o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), representado pelo seu Presidente, Rev. Dr. Walter Altman, e o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), representado por sua Secretária Executiva, Rev. Romi Bencke.

Em terceiro lugar, a resistência à ditadura era um elemento inerente à fé que se comprometia, como disse Carlos Mesters, a ouvir o que dizia o povo que sofre, e a com ele realizar gestos de libertação. Por isso, a nuvem de testemunhas foi imensa, e não poucos sofreram o martírio como o operário Santo Dias, a camponesa Margarida Alves, o índio Simão Bororo, o padre Rodolfo que o acompanhava, e muitas e muitos foram torturados com sevícias indizíveis, como a Madre Paulina, da diocese de Botucatu. Mulheres e homens que deram suas vidas pelo Reino, como nos ajudou a cantar‑sentir Zé Vicente, da diocese de Crateús. E o testemunho também se materializou em denúncia, como o Projeto Brasil Nunca Mais, que foi coordenado, no Brasil, pelo Rev. Jaime Wright e pelo arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Cardeal Arns.

Seguramente, os momentos mais fecundos, durante o seminário, foram os testemunhos. Pessoas como Waldemar Rossi e Adhemar Pinheiro, operários, que foram do Movimento Popular de Libertação e foram detidos e torturados nos porões da Ditadura, e Chico Whitaker, que cooperou de muitas formas para a construção democrática, nos anos de chumbo, desde o exílio.

Dois dos testemunhos emocionaram muitíssimo as mais de centenas de participantes. Dom Celso Queiroz, um dos ex-secretários gerais da CNBB e fez seu emocionante relato de repulsa ao pior mal da Ditadura: a tortura. Ele mostrou como esse mal desumaniza a vítima e o próprio torturador. Afirmou que podemos perdoar, jamais compreender a tortura, dada sua indignidade. E temos que exigir reparações de tal injúria. Indicou como havia bispos que pensavam ser exagerada ou apenas emocional a reação à tortura, ao que ele reprovava, dizendo, vai sentir aquela emoção, você.

Outro testemunho igualmente impactante foi o de Anivaldo Padilha, leigo metodista, que participou da Ação Popular. Foi preso e torturado por 21 dias. Relatou seu temor diante dos torturadores e sua experiência mística. Foi místico, segundo ele, descobrir como a força do cristão é maior. Mesmo fraco e fragilizado, sob tortura, apenas uma pessoa, um ator político desafiava o regime, era forte. A prova espiritual que ele percebeu para isso, era que sessões de tortura sempre tinham o fenômeno da covardia: muitos contra um. Mais ainda, a força dos cristãos estava em extrair forças da fraqueza, forças que apenas poderiam ser entendidas como dom do Senhor.

Em plena consonância com os processos de revisão que a Comissão de Anistia e Comissão Nacional da Verdade, além da enorme presença das comissões da verdade estaduais e as que emergem da sociedade civil, das comissões de familiares das vítimas da ditadura e de familiares de mortos e desaparecidos, a CBJP quer dar eco a esta necessidade. Precisamos de reconstrução de nossa história, implementação dos efeitos da Justiça de Transição e, com isto, aprofundar a experiência democrática. Seguramente, no momento em que a voz das ruas se faz ouvir, pela justa indignação com tantas e tamanhas injustiças ainda em curso, precisamos dessa sabedoria. Como dizia a canção, que sabedoria é essa que vem do meu povo, é a sabedoria daquelas e daqueles que não se conformam com a ausência de profunda relação democrática e justa repartição social da riqueza socialmente produzida. Como nos ensina Jesus: quem tiver ouvidos para ouvir…

Jorge Atilio Silva Iulianelli é assessor de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço, Consultor da Comissão Nacional da Verdade (GT Igrejas e Ditadura), Professor da Universidade Gama Filho.

Fonte: www.cbjp.org.br

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