Se quem tolera a presença dos cubanos é comunista, como definir os que toleram portugueses e argentinos?
Polêmica trouxe a questão da saúde pública para o centro de uma discussão.
Por Reinaldo Lobo*
Você se consultaria com um médico cubano? Acha que ideologia pega? Tem desprezo por médicos negros ou que recebem seus salários dividindo uma parte com o governo da terra de Fidel Castro? Você acha que cubanos podem ajudar na saúde do Brasil?
Para alguma coisa já serviu toda essa polêmica sobre a vinda de médicos cubanos ao país. A questão da saúde pública virou o centro de uma discussão nacional e confirmamos também que, quando o povo grita nas ruas, o governo se mexe para encontrar uma solução rápida.
Rápida demais, dirão alguns. Precária e errada, dizem esses críticos que pertencem à oposição ou são médicos da elite que se identifica com a Medicina privada norte-americana, ultra- tecnológica e milionária. Mas algo é certo: o impacto da chegada dos médicos negros, mulatos e brancos de Cuba coloca o problema da saúde pública brasileira num nível de urgência em que jamais esteve e talvez seja uma oportunidade para as populações das 3511 cidades e 15 distritos sanitários indígenas, que se declararam absolutamente carentes de médicos e que pediram ajuda ao programa "Mais Médicos" do governo federal. É possível até que sejam , finalmente, atendidas em grande parte...
Todos sabemos que são raros os médicos que se dispõem a trabalhar no Acre, no Piauí, no interior de Mato Grosso do Norte, no Tocantins, no Amazonas e nos chamados grotões do sertão nordestino. Os médicos brasileiros gozam dos privilégios das grandes cidades próximas do litoral brasileiro, onde existem shoppings, clientela chique, concessionárias de carrões, consultórios com FM na sala de espera, grandes e aparelhados hospitais. Sua meta é trabalhar com a clientela "especial" e nos hospitais mais modernos. Mesmo no interior de estados como São Paulo e Rio existem inúmeras cidades sem médico. Todos conhecem a situação precária de municípios onde um ortopedista aparece uma vez por mês, um oftalmologista uma em cada três meses...E mesmo aparecendo no pronto atendimento local, na maioria dos casos só vai atender casos mais graves longe dalí, obrigando ao transporte de longas distâncias.
O governo ofereceu 15.450 vagas do seu programa. E o salário de 10 mil reais, o que poucos ganham no país. Só apareceram 1056 médicos com diploma brasileiro. Foi então que o Ministério da Saúde acionou o convênio com Cuba e outros países e começou a trazer os estrangeiros. Vieram também portugueses, argentinos e alguns espanhóis, mas disso a grande mídia falou quase nada, pois a polêmica é em torno dos cubanos por razões políticas e ideológicas.
A extrema direita está assanhada, com fins eleitorais, e tenta desmoralizar de toda forma o governo. Defende um raciocínio curioso: quem tolera a presença dos cubanos só pode ser fidelista, comunista ou defenderia o regime de Cuba. E quem tolera a presença de portugueses e argentinos, o que é?
Os jornalões conservadores, as revistas e a TV Globo, sobretudo, não darão sossego a esses médicos cubanos. Nem ao governo e a quem aceitar a presença deles. Batem na tecla sobre os cubanos serem "escravos remunerados", por dividirem seus salários com o governo cubano, mas não discutem o trabalho escravo no Brasil, onde nem salário se percebe em inúmeras fazendas até ligadas à Sociedade Rural Brasileira e onde grandes confecções exploram imigrantes ilegais vindos da Bolívia , do Paraguai e outros países. A classe média brasileira consome.alegremente produtos eletrônicos e inúmeras bugigangas vindas da China, de Cingapura e da Coréia do Sul, países onde não se conhecem direitos trabalhistas como os nossos e nem sequer o limite de oito horas diárias e de idade é respeitado com frequência. O zelo com os trabalhadores cubanos é emocionante por parte da nossa imprensa, mas não com as crianças de fábricas de tênis e gadgets de Taiwan ou de Hong Kong.
A maior oposição à presença dos médicos cubanos vem, porém, da classe médica. Aí, a questão está muito mal colocada. Os CRMs estão argumentando que há médicos muito bem preparados no Brasil e que não precisamos dos cubanos. Onde estão esse médicos? Nas grandes cidades. Ou seja, o que está em questão não é a qualidade da medicina brasileira, nem o ensino das nossas faculdades, mas o corporativismo excessivo e os valores de classe dominante que aglomera nossos doutores nos centros ricos. No sul e sudeste, há uma média de 2,5 a 3 médicos por mil habitantes, o que ainda é pouco. Mas em Estados como Mato Grosso ou Tocantins a média por mil habitantes é de 1 médico a 1,3. Sem falar naqueles locais onde não há nenhum médico nem por mil nem por dois mil habitantes.
Na verdade, os médicos brasileiros estão com medo de perder privilégios e um mercado que lhes é inteiramente favorável. Se faltam médicos , a procura é alta. E a oferta eleva seu valor. A presença dos cubanos , se der certo, é uma ameaça por duas razões principais: desequilibra a lei da oferta e da procura e rompe com a ideia de que só funciona a medicina privatizada, inspirada no modelo norte-americano. Modelo , aliás, que o presidente "socialista" Barack Obama tem tentado enfrentar sem grande sucesso, pois o lobby das seguradoras e planos de saúde, aliado aos caríssimos médicos privatistas, tem uma enorme força no Congresso de maioria republicana.
A presença dos cubanos aponta para uma direção que os médicos da elite, identificados com essa Medicina dos EUA, mais temem, isto é, a saúde pública tornar-se realmente pública e predominantemente gratuita. Como dizia o economista liberal ao estilo norte americano, John Kenneth Galbraith, se tentarmos tirar um privilégio ou os símbolos de poder de alguém da elite dominante, essa pessoa responderá como se estivéssemos tirando-lhe um legítimo direito.
Tente ameaçar privilégios, dizia ele, e você terá que enfrentar uma contrarrevolução conservadora.
Os cubanos chegaram. Lembra-se daquele filme da época da Guerra Fria, "Os russos estão chegando", sobre a paranoia norte-americana ? Bem, os cubanos estão aí. E a paranoia brasileira está acesa na mídia. Se você aceitar ser atendido por um negro cubano e gostar , achá-lo até eficiente e um bom médico, prepare-se: a contrarrevolução terá você em sua alça de mira. Pois ela vem aí, não tenham dúvidas.
*Reinaldo Lobo é psicanalista, doutor em Filosofia pela USP, jornalista e tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com
Dom Total
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