Os confrontos entre crentes e não-crentes causaram 750 mortes em apenas dois dias.
Adeus, Primavera Árabe: Egito à beira da guerra civil. (Foto: Arquivo) |
Por Moisés Rabinovici*
O faraó Hosni Mubarak rogava praga contra a Primavera Árabe, em janeiro de 2011. Que fosse uma 11ª, apocalíptica, contando desde o Egito bíblico. E ordenou a seu exército que executasse a maldição. Mas diante das flores brotando democráticas pelas ruas do Cairo e até na aridez do deserto do Sina...i, os soldados deram meia volta, volver!, e marcharam, ao contrário, para o palácio, arrancando-o com as raízes de 30 anos de poder ditatorial.
Os jovens egípcios comemoraram o exército que os libertou. Orgulharam-se dele porque, além do mais, seus generais prometiam entregar o poder ao vencedor de eleições democráticas. E assim o fizeram. Assumiu Mohamed Morsi, da Irmandade Muçulmana, saída de uma longa clandestinidade. Não era bem a flor que os jovens seculares pretendiam plantar em sua Primavera Árabe. Mas ao vencedor, as batatas.
Junto às batatas, brotaram ervas daninhas. Como Hugo Chávez, na Venezuela, o irmão muçulmano Morsi passou a usar a democracia para implantar uma tirania fundamentalista. A economia, um desastre; o desemprego, crescente; a paz com Israel, tolerada, em troca da enorme ajuda norte-americana; mas as leis islâmicas, sancionadas. Quem poderia imaginar a egípcia de véu, ou burca? Ou o Egito, berço do mundo árabe, extensão da Arábia Saudita?
Para piorar, a Al Qaeda se introduziu no Sinai, arregimentando tribos de beduínos e palestinos jihadistas vindos de Gaza. Oásis de armas contrabandeadas da Líbia já não eram mais miragem no deserto. E algumas já estão disparando contra Eilat, em Israel.
O golpe contra Mohamed Morsi, em 3 de julho, não tem comparação com a derrubada do faraó Mubarak. O exército "defensor da democracia" foi promovido, com maciço apoio popular laico, a um "exército com posição política". Num caso, agiu em nome de todos – inclusive dos Irmãos Muçulmanos. Noutro, negou o resultado de uma eleição democrática, da qual era o patrocinador e avalista.
Os jovens liberais da praça Tahir que exigiam a renúncia de Morsi caíram num dilema: incitaram o exército ao golpe, mas não o querem, como agora, com amplos poderes e força bruta. Regrediram à lei marcial dos 30 anos de Mubarak. Estão sob toque de recolher. São, de certa maneira, cúmplices do massacre da retirada dos Irmãos Muçulmanos das praças ao lado da grande mesquita e da universidade do Cairo, na quarta-feira. Generais estão assumindo os governos de várias cidades, como Alexandria e Ismayilia. Seus 500 mil soldados foram treinados para a guerra contra outros países, não para reprimir protestos.
A primeira reação do presidente americano, Barack Obama, foi disparar contra os militares. Ele cancelou manobras conjuntas que estavam marcadas para breve. Pode ainda cortar bilhões de dólares em ajuda para rearmamento. Desde que não condenou o golpe contra Morsi, não pode ir muito além agora. O general com nome de princesa, Sisi, hoje o comandante do Egito, tentou repartir suas responsabilidades com emissários europeus e norte-americanos, mas a Irmandade resistiu: só aceita discutir a reintegração de seu presidente, que foi eleito democraticamente. Nada mais. Para eles, a batalha opõe crentes e não-crentes. E o temor é de que venham a formar uma guerrilha urbana e o Egito descambe para a guerra civil, como aconteceu na Síria.
O Egito é o quarto país em que a Primavera Árabe se converteu a Outono. Na Tunísia, onde brotaram jasmins, a divisão política impede a promulgação de uma nova Constituição. A Líbia está ocupada por várias milícias, que só o ditador Muamar Kadafi mantinha comportadas. E a Síria vira ruína com uma guerra civil sangrenta. Daí a conclusão do jornal The New York Times: para os países da Primavera Árabe, a paz é mais difícil do que a Revolução.
*Moisés Rabinovici é diretor de Redação do Diário do Comércio de São Paulo.
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