quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Quem sou eu? - Johan Konings


Onde encontro o meu eu?
“Quem sou eu para julgar?” disse o papa Francisco interrogado sobre a atitude para com os homossexuais. A frase foi acolhida positivamente, embora deixasse transparecer o pressuposto de que haja algo a julgar... Mas o que me interessa é o início da frase: “Quem sou eu?” O Papa deu a entender que isso não é algo que eu mesmo decido. No nosso Eu há algo que nos supera, uma Instância que me apela. Esta afirmação, porém, encontra oposição dos filósofos da Modernidade, que dirão: “Isso aí é heteronomia! O sujeito não pode desistir de sua autonomia!” 
Antes de voltar à questão da autonomia, coloco aqui a pergunta: “Onde encontro o meu eu?” Há muita confusão a respeito disso. Há quem pense que identidade é identificação com o time de futebol pelo qual se torce ou com a igreja que se frequenta. Num nível mais profundo, os psicanalistas apontam a identificação não resolvida com pai ou mãe como uma das raízes da neurose. Identidade falsa, identidade espelho...
Não me deixa em paz uma expressão bíblica: Jônatas, filho de Saul, “amava Davi como à sua própria alma” (1 Samuel 18,3; 20,17). Já no mandamento do amor ao próximo (Levítico 19,18.35 e nos evangelhos de Jesus, Marcos 12,31 e textos paralelos, é usada uma expressão mais breve: “amarás o próximo como a ti mesmo”, substituindo o termo “alma” pelo pronome pessoal. De qualquer modo, trata-se de ser afetado pela vida do outro como se fosse pela própria vida da gente. Poderíamos dizer: “Jônatas se afeiçoou por Davi como se a alma (= vida) dele fosse a sua própria”. Concretamente: Jônatas imagina-se no lugar de Davi e pensa: antes morra eu do que ele. Séculos depois, Jesus de Nazaré dirá: “Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua alma (= vida) em prol de seus amigos” (João 15,13).
A “alma”, no sentido bíblico, não é a alma preexistente do platonismo e de doutrinas semelhantes, que especulam sobre a transmigração da alma. Não entro no mérito dessas doutrinas, que não provêm da Bíblia. Na Bíblia, a “alma” é uma maneira popular e metafórica para significar aquilo que me faz viver. Literalmente, significa meu alento, minha respiração. Ora, o que me faz viver não é aquilo que eu guardo ansiosamente para mim, mas o que eu doo para os outros, colocando-me no lugar deles.  A vida é maior do que o “eu” que eu quero salvar para mim.
O filósofo judeu Emmanuel Levinas pensou muito sobre isso. Explica que o rosto do outro –meu próximo– me afeta com um apelo, que é um vestígio do Transcendente, de Deus que passa sem que eu possa ver o seu rosto (vejo-o apenas pelas costas, como Moisés em Êxodo 33,23...). E a graça de poder responder a esse apelo é o que faz brotar de dentro de mim meu verdadeiro “eu”, a possibilidade de ser alguém de Deus para o outro. Como o samaritano que, de repente, se tornou próximo daquele que caiu nas mãos dos ladrões (Lucas 10,36-37).
A identidade não é uma propriedade particular a ser guardada, mas um bem a ser repartido. E para que essa partilha não seja uma simples extensão da identidade que eu concebo para mim mesmo –portanto, uma privatização–, é preciso que ela seja a resposta ao apelo que vem do outro, da alteridade: apelo que suscita em mim e faz surgir dentro de mim o que na realidade (e não na minha imaginação) eu sou.
Aí está a verdadeira autonomia do sujeito que a Modernidade tão incansavelmente procura afirmar. Não consiste apenas em ser dono de si mesmo. Muito menos, em deixar outros decidirem por mim, como acontece ao eu não integrado, o eu espelho, o eu dominado pela figura paterna ou materna, ou pela religião, ou pela ideologia, ou pela publicidade e pelo mercado.
O que tenho dentro de mim é apenas potencialidade. A realização dessa potencialidade é aquilo que eu doo de mim, não porque “me quero realizar” expandindo meu eu, mas porque me entrego para responder ao apelo da realidade que me advém no apelo do outro. Este é meu verdadeiro eu: é nisto que se revela quem eu sou diante da realidade que é de todo mundo e por isso minha também. A realidade que –usando terminologia religiosa– só Deus engloba. É assim que vivo realmente, que minha “alma” é verdadeira. Assim não fico alienado por um eu imaginário dentro de mim, mas encontro o verdadeiro eu, livremente integrado na realidade que Deus tem sob o seu olhar. “Quem quiser salvar sua alma (vida) a perderá, mas quem perder sua alma por causa de mim a encontrará” (Mateus 16,25).

Johan Konings Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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