Com razão, católicos e não católicos se felicitam com o papa Francisco, porque com gestos e palavras claros e simples expressa o cerne do evangelho de Jesus. Muitos até pensam que ele vai ‘mudar alguns dogmas’, como se diz. Talvez não, pois doutrina e dogma não se identificam, pura e simplesmente, com a comunicação do evangelho. Ainda bem...
Doutrina e, sobretudo, dogma (termo grego que significa algo como ‘parecer’) referem-se à expressão fixada e determinada, portanto, delimitada de uma verdade que se quer pôr diante dos olhos. Ora, S. Tomás de Aquino diz que a verdade não tem seu termo no enunciado, mas na realidade. Aplicando isso aos dogmas, podemos dizer que eles não ‘são’ a verdade, no sentido da realidade mesma, mas apontam para ela, nas condições que seu código linguístico e as circunstâncias de sua determinação (confinação em termos) permitem. São, portanto (de)limitados. São antes um marco que indica onde se encontra a verdade do que a verdade mesma. E doutrina infalível é aquela que indica com toda a segurança onde se encontra a verdade, mas não é a verdade ‘em própria substância’. Por causa de sua delimitação pela estrutura linguística e pelo contexto histórico, doutrina e dogma precisam sempre de interpretação, ou hermenêutica. O fundamentalismo é a pretensão de dispensar a hermenêutica, ou interpretação, e isso dá zebra.
Evangelização, porém, é mais que ‘definição de doutrina’. Diz respeito, sobretudo, ao que acontece com o receptor da mensagem. A mensagem emitida pelo evangelizador é recebida num ato de ‘recepção’, que deve levar o receptor à verdade entendida como efeito e como realidade. A mentira, pelo contrário, não conduz a essa verdade, não tanto por causa de sua formulação, que parece certinha, mas por causa de toda uma estratégia de circunstâncias e de não-ditos.
Quando se trata da fé cristã e da vida prática de quem procura seguir o Cristo Jesus, a comunicação eficaz tem importância direta maior que o dogma. O dogma fica por assim dizer na reserva, no segundo plano, no ‘depósito da fé’, ao qual se deve recorrer, por exemplo, quando surgem dúvidas ou novas formas de expressão. Guardar o depósito é o papel do ‘magistério’, mas comunicar o evangelho cabe a todos, como disse o papa Paulo VI: todos os evangelizados devem ser evangelizadores.
A verdadeira evangelização produz o ‘efeito do texto’: o destinatário capta realmente o sentido. O texto se torna eficaz pelo que acontece entre o emissor e o receptor (leitor, ouvinte, telespectador). Sem a comunicação eficaz e autêntica (fiel à intenção visada pelo emissor, segundo as capacidades do receptor), o texto fica morto e pode até se transformar num perigo. Por isso, Paulo diz que a letra mata, mas o espírito é que dá vida (2Coríntios 3,6). E esse espírito é o espírito de Deus em que se banha a comunidade de Cristo.
Esta breve introdução à ‘hermenêutica do dogma’ serviu para dizer que nosso atual papa é maravilhoso na comunicação simples, direta, autêntica e eficaz. Mas nem por isso vai mudar as doutrinas. A organização e a prática pastoral, isso provavelmente, sim. É relativamente fácil, por exemplo, admitir ao sacerdócio homens casados e de vida exemplar, pois isso nada tem a ver com o dogma no sentido estrito. É uma questão de disciplina pastoral prática. Já a ordenação de mulheres é um problema de doutrina, com o qual não penso que o papa vai mexer – o que não o deve impedir de colocar mulheres nos altos escalões do Vaticano, pois para isso não é preciso ser sacerdote.
E a questão da comunhão dos ‘recasados’? Aqui há aspectos doutrinais que devem ser postos a salvo. Os que se casam diante de Cristo assumem fidelidade para a vida inteira, na alegria e na dor, até que a morte os separe. Mas o que fazer se não deu certo? O prometido não foi alcançado, certo, mas não se poderá recomeçar? Problema pastoral, com incidências práticas...
Cabe aqui um esclarecimento prévio: proeminentes (e tradicionais) teólogos católicos estão convencidos de que ‘muuuitos’ casamentos no Brasil são inválidos, nulos, porque contraídos sem as devidas condições: intenção clara e séria, plena liberdade e consentimento, conhecimento mútuo dos parceiros e da vida... Se esses casamentos fossem levados aos tribunais eclesiásticos, seriam facilmente declarados nulos e ‘inexistentes’, o que resolveria o problema. Mas as pessoas não sabem, e tais processos custam tempo e dinheiro...
Ora, no caso em que o primeiro casamento foi válido e, portanto, sacramento, será que não se poderia fazer como as Igrejas Orientais, que admitem à comunhão a ‘parte inocente’ (por exemplo, a mulher abandonada pelo marido e que se casa de novo porque, sem marido, a vida e a educação dos filhos são muito difíceis naquelas regiões)? A Igreja Católica insiste que os ‘recasados’ devem ser respeitados, que a própria consciência decide se estão, subjetivamente, pecando ou não, e que eles podem ter a ‘comunhão espiritual’, que os faz participar da graça de Deus. E há muitos que em toda simplicidade assim fazem. Por outro lado, creio que Deus não se assusta quando uma pessoa recasada, em boa consciência e sem escândalo, julga poder receber a hóstia. Mas será esse o caso daquelas pessoas recasadas que quase nunca vão à igreja, porém, na hora de uma missa cerimonial lá aparecem e ostensivamente querem receber a comunhão? Aliás, pergunta semelhante deve se fazer a respeito dos que, embora bem-casados, continuamente pisam aos pés as mais fundamentais exigências da justiça...
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