quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O papa, o evangelho e a doutrina - Johan Konings

            

Com razão, católicos e não católicos se felicitam com o papa Francisco, porque com gestos e palavras claros e simples expressa o cerne do evangelho de Jesus. Muitos até pensam que ele vai ‘mudar alguns dogmas’, como se diz. Talvez não, pois doutrina e dogma não se identificam, pura e simplesmente, com a comunicação do evangelho. Ainda bem...

Doutrina e, sobretudo, dogma (termo grego que significa algo como ‘parecer’) referem-se à expressão fixada e determinada, portanto, delimitada de uma verdade que se quer pôr diante dos olhos. Ora, S. Tomás de Aquino diz que a verdade não tem seu termo no enunciado, mas na realidade. Aplicando isso aos dogmas, podemos dizer que eles não ‘são’ a verdade, no sentido da realidade mesma, mas apontam para ela, nas condições que seu código linguístico e as circunstâncias de sua determinação (confinação em termos) permitem. São, portanto (de)limitados. São antes um marco que indica onde se encontra a verdade do que a verdade mesma. E doutrina infalível é aquela que indica com toda a segurança onde se encontra a verdade, mas não é a verdade ‘em própria substância’. Por causa de sua delimitação pela estrutura linguística e pelo contexto histórico, doutrina e dogma precisam sempre de interpretação, ou hermenêutica. O fundamentalismo é a pretensão de dispensar a hermenêutica, ou interpretação, e isso dá zebra.

Evangelização, porém, é mais que ‘definição de doutrina’. Diz respeito, sobretudo, ao que acontece com o receptor da mensagem. A mensagem emitida pelo evangelizador é recebida num ato de ‘recepção’, que deve levar o receptor à verdade entendida como efeito e como realidade. A mentira, pelo contrário, não conduz a essa verdade, não tanto por causa de sua formulação, que parece certinha, mas por causa de toda uma estratégia de circunstâncias e de não-ditos. 

Quando se trata da fé cristã e da vida prática de quem procura seguir o Cristo Jesus, a comunicação eficaz tem importância direta maior que o dogma. O dogma fica por assim dizer na reserva, no segundo plano, no ‘depósito da fé’, ao qual se deve recorrer, por exemplo, quando surgem dúvidas ou novas formas de expressão. Guardar o depósito é o papel do ‘magistério’, mas comunicar o evangelho cabe a todos, como disse o papa Paulo VI: todos os evangelizados devem ser evangelizadores.

A verdadeira evangelização produz o ‘efeito do texto’: o destinatário capta realmente o sentido. O texto se torna eficaz pelo que acontece entre o emissor e o receptor (leitor, ouvinte, telespectador). Sem a comunicação eficaz e autêntica (fiel à intenção visada pelo emissor, segundo as capacidades do receptor), o texto fica morto e pode até se transformar num perigo. Por isso, Paulo diz que a letra mata, mas o espírito é que dá vida (2Coríntios 3,6). E esse espírito é o espírito de Deus em que se banha a comunidade de Cristo.

Esta breve introdução à ‘hermenêutica do dogma’ serviu para dizer que nosso atual papa é maravilhoso na comunicação simples, direta, autêntica e eficaz. Mas nem por isso vai mudar as doutrinas. A organização e a prática pastoral, isso provavelmente, sim. É relativamente fácil, por exemplo, admitir ao sacerdócio homens casados e de vida exemplar, pois isso nada tem a ver com o dogma no sentido estrito. É uma questão de disciplina pastoral prática. Já a ordenação de mulheres é um problema de doutrina, com o qual não penso que o papa vai mexer – o que não o deve impedir de colocar mulheres nos altos escalões do Vaticano, pois para isso não é preciso ser sacerdote. 

E a questão da comunhão dos ‘recasados’? Aqui há aspectos doutrinais que devem ser postos a salvo. Os que se casam diante de Cristo assumem fidelidade para a vida inteira, na alegria e na dor, até que a morte os separe. Mas o que fazer se não deu certo? O prometido não foi alcançado, certo, mas não se poderá recomeçar? Problema pastoral, com incidências práticas... 

Cabe aqui um esclarecimento prévio: proeminentes (e tradicionais) teólogos católicos estão convencidos de que ‘muuuitos’ casamentos no Brasil são inválidos, nulos, porque contraídos sem as devidas condições: intenção clara e séria, plena liberdade e consentimento, conhecimento mútuo dos parceiros e da vida... Se esses casamentos fossem levados aos tribunais eclesiásticos, seriam facilmente declarados nulos e ‘inexistentes’, o que resolveria o problema. Mas as pessoas não sabem, e tais processos custam tempo e dinheiro... 

Ora, no caso em que o primeiro casamento foi válido e, portanto, sacramento, será que não se poderia fazer como as Igrejas Orientais, que admitem à comunhão a ‘parte inocente’ (por exemplo, a mulher abandonada pelo marido e que se casa de novo porque, sem marido, a vida e a educação dos filhos são muito difíceis naquelas regiões)? A Igreja Católica insiste que os ‘recasados’ devem ser respeitados, que a própria consciência decide se estão, subjetivamente, pecando ou não, e que eles podem ter a ‘comunhão espiritual’, que os faz participar da graça de Deus. E há muitos que em toda simplicidade assim fazem. Por outro lado, creio que Deus não se assusta quando uma pessoa recasada, em boa consciência e sem escândalo, julga poder receber a hóstia. Mas será esse o caso daquelas pessoas recasadas que quase nunca vão à igreja, porém, na hora de uma missa cerimonial lá aparecem e ostensivamente querem receber a comunhão? Aliás, pergunta semelhante deve se fazer a respeito dos que, embora bem-casados, continuamente pisam aos pés as mais fundamentais exigências da justiça...

Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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