segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Triste esquecimento - Émilien Vilas Boas Reis


Quando reinterpretadas, as lembranças ganham um novo significado, que permite conviver com um fato passado.
No Livro X da obra Confissões, Santo Agostinho (354-430) faz uma das análises mais impressionantes sobre a memória. O autor africano vai descendo pelos mais escondidos “lugares”, chegando ao ponto de descrever a lembrança que se tem sobre aquilo que se esqueceu (lembro de X, mas não sei bem o que é!). A memória é aquela faculdade mental que faz alguém ser realmente quem ela é. Em suma: “sou minhas lembranças”. É a memória que permite um sujeito fazer elo entre os vários momentos de sua vida, dando uma espécie de continuidade. 

A teoria psicanalítica, por sua vez, chama a atenção para o fato de que um sujeito não se lembra de tudo por aquilo que passou. Várias situações traumáticas são simplesmente esquecidas ou muitas vezes reinterpretadas, já que se tem uma dificuldade em lidar com certas lembranças. Quando reinterpretadas, as lembranças ganham um novo significado, que permite conviver com um fato passado.

Entretanto, lembrar de tudo também seria um problema. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1889-1986) tem um conto denominado “Funes, o memorioso, em que relata a história do protagonista com uma memória extraordinária, tendo a capacidade de se lembrar sobre tudo nos mínimos detalhes. Porém, Funes não era capaz de transformar toda a sua aptidão em pensamento, pois, como é narrado no conto: “suspeito entretanto, que [Funes] não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”. 

Outro genial escritor, Marcel Proust (1871-1922), em sua obra máxima “Em Busca do Tempo Perdido” no primeiro volume, “No caminho de Swann”, narra à incrível jornada da memória a partir de um fato cotidiano: “Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal (...) Deponho a taça e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz”.

Mas existem aqueles que não conseguem mais se lembrar de quase nada. Aqueles que não têm a capacidade de associar um rosto a uma história, a uma vida. Parte do passado se perdeu em algum ponto da memória. O presente também não perdura. A história desta pessoa depende do interlocutor, que guarda ainda momentos vividos com ela. A memória falha, as lembranças fogem, e o que resta é um triste esquecimento.

Émilien Vilas Boas Reis é graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre e Doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professor de Filosofia do Direito e Metodologia de Pesquisa na Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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