sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Show de virtudes

Enfim, um seriado de TV que brinda o telespectador com os valores que desapareceram da vida real.



(Foto: Ilustração Max Velati)
Por Max Velati*

Eu e minha mulher estamos acompanhando apaixonadamente uma série de TV. Na semana passada descobri - com alguma dose de embaraço - que "Downton Abbey" faz muito mais sucesso do que eu poderia imaginar. Pensei que se tratava de uma produção meio "cult" e com apenas um punhado de fãs por aí, mas o seriado já recebeu os maiores prêmios da TV e foi incluído no livro Guinness dos recordes como a série de língua inglesa mais aclamada de 2011.

Meu espanto por tamanho sucesso é justificável: a série não possui nenhum dos ingredientes que em geral garantem as grandes audiências. Não, não há um cadáver misteriosamente assassinado a cada episódio. Também não existem vampiros, psicopatas, serial killers, traficantes de drogas, policiais virtuosos ou personagens atormentados que violam todas as regras para garantir um bem maior. Nada disso. Também não há efeitos de computador, lutas memoráveis ou perseguições pelas ruas.

O fato é que explosões, efeitos especiais ou personagens sobrenaturais muitas vezes são artifícios para esconder a falta de uma boa história. O mesmo vale para baldes de sangue, troca de socos ou o trabalho mecânico das armas automáticas. Estes ingredientes muitas vezes servem para suprir a falta de um bom diálogo ou atores de verdade e a prova disso é que sem lançar mão destes recursos o seriado não apenas se sustenta, mas se ergue acima dos demais. A boa dramaturgia inglesa mostra que é poderosa o suficiente para conquistar a nossa atenção sem precisar de espelhos e fumaça, mas há uma outra razão para este drama de época ter conquistado tantos admiradores.

É difícil imaginar que as atribulações de nobres ingleses sob o reinado de George V ofereçam entretenimento suficiente para mais de uma hora. Impossível ainda acreditar que a legião de serviçais de um castelo possa prender nossa atenção se não estiver fazendo piadas a cada duas frases ou tramando o assassinato dos patrões. Não. Neste seriado que agora faz parte da vida da minha família os personagens são apenas nobres e serviçais agindo como nobres e serviçais.

Este é o material humano da série e aqui uso "humano" na extensão completa da palavra, pois há tempos a TV não mostrava personagens com dimensões tão humanas. Desde "House" os atores não colocavam em jogo de maneira tão competente a mágica da "suspensão da descrença", o poder que a boa dramaturgia tem de nos enganar e de nos convencer por um tempo finito que aquilo que estamos vendo não é de mentirinha, mas uma realidade "especial". Mas, repito que há uma outra razão para este drama de época ter conquistado tantos admiradores.

Qualquer pessoa que tenha assistido a pelo menos um dos episódios vai concordar que todos os personagens parecem ter uma qualidade especial, um brilho que no primeiro momento parece ser gerado pelo luxo e requinte de figurinos e cenários. Aos poucos, percebemos que este brilho não vem dos objetos de produção, mas dos personagens e a razão para o sucesso deste seriado é justamente esta luz. Descobri que o motivo para assistirmos hipnotizados cada frase e cada gesto deste elenco é a oportunidade que temos de testemunhar o brilho e o poder da polidez.

Um seriado inglês sobre nobres e serviçais mostra o que significa ser polido, mesmo no conflito, mesmo no drama, mesmo diante de um abismo separando classes. Neste seriado a polidez nos ensina que os bons modos mostram que estamos cientes da existência do outro. É claro que um canalha não deixa de ser canalha porque é polido, mas isso não é de fato polidez e sim hipocrisia, moeda falsa passada como verdadeira. Não estou falando de teatro social, mas de virtude moral passada de geração para geração. Estou falando da noção sagrada de direitos e também de limites, de respeito e educação para a vida em comunidade. Estou falando, em resumo, de todos os valores que desapareceram da vida real e para nosso consolo estão preservados ao menos em um seriado de TV.

Para aqueles que já preparam as pedras no estilingue para me lembrar que há um milhão de razões para criticarmos a monarquia, a nobreza concedida no berço ou o papel da Inglaterra na História da Civilização, declaro que estou ciente de todos este ângulos, mas na coluna de hoje decidi prestar homenagens aos bons modos inspirado por Chamfort, que lembra que "nas grandes coisas os homens mostram-se como lhes convém mostrar-se; nas pequenas, mostram-se como são".
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é chargista de Economia da Folha de São Paulo.

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