O mais difícil e traiçoeiro inimigo da esquerda parece ser, em várias ocasiões, ela própria.
Por Reinaldo Lobo*
Os maiores inimigos da esquerda brasileira não são, muitas vezes, os conservadores. Não é a direita poderosa instalada nas oligarquias liberais. Nem as ditaduras ultra-reacionárias. Tampouco é a mídia empresarial capaz de filtrar as notícias a fim de prejudicar interesses populares e proteger os ricos. Ou mesmo os fascistas estúpidos que baixam o nível do debate e usam até de violência para calar as classes trabalhadoras. Nada disso. O mais difícil e traiçoeiro inimigo da esquerda parece ser, em várias ocasiões, ela própria.
Dizer isso não significa - é bom avisar - que a esquerda tenha algum defeito intrínseco em sua natureza, em seus valores, propósitos e projetos, de resto generosos, fundados na solidariedade e fraternidade. Também não quer dizer que estejamos em condições únicas para servir como consciência crítica à esquerda, como se ela não soubesse nunca o que faz e não se autocriticasse. Às vezes, até exagera nessa autocrítica, iniciada nos hábitos do bolchevismo. Mas o que falta é a prática da fraternidade real entre companheiros. Faltam a coragem de se aliar sem medo de traição e a franqueza de reconhecer como o próprio desejo de poder interfere.
É notória a incapacidade da esquerda para se unir verdadeiramente, seja em eleições, seja em frentes amplas ou até mesmo em movimentos civis que reúnam diferentes grupos, em torno de uma causa comum. Nas universidades, no movimento estudantil, nos sindicatos, nos movimentos sociais e nas ações culturais aparecem as rivalidades e os sectarismos ao ponto de, não raro, gerar ódios e inimizades definitivas.
No episódio dos presos acusados do "mensalão", com a direita batendo forte no PT, achincalhando a todos e não só a parte acusada, estendendo a vaia a toda forma de socialismo, o que se viu foram algumas alas da própria esquerda batendo junto e usando os mesmos argumentos da direita. Não fizeram uma crítica de esquerda à esquerda. E faltou solidariedade. Esses grupos, muitos deles oriundos do stalinismo ou de um marxismo dogmático, não suportam crítica. Acham que ninguém pode ser a consciência da esquerda, mas se arrogam o direito de deter o monopólio da opinião.
Há uma suscetibilidade de esquerda. Qualquer crítica - e elas não faltam - pode ser sentida como uma operação provinda do "inimigo de classe". Uma conspiração.
É verdade que toda a esfera política tende a se mover um pouco na paranóia e inclina-se, portanto, ao maniqueísmo. Creio que foram o polêmico teórico conservador Carl Schmitt e também, de certa forma, o liberal Max Weber os que descreveram a essência do processo político como a dicotomia amigo/inimigo. Qualquer pessoa ou entidade que entre no cenário político está automaticamente sujeita de maneira implícita a essa cisão em campos opostos. A simples existência da atividade partidária torna essencial esse binômio. O "partido", isto é, uma parte, é a resultante da divisão das diferentes vontades. "Ou está comigo ou está contra mim". Política funciona em geral assim. As alianças e composições giram em torno da divisão básica. Hegel, o filósofo, dizia que quando um movimento político cresce ele se divide. Seria quase um movimento "natural" imposto pela dialética do desdobramento da ação política, na qual o crescimento da quantidade de participantes de um movimento altera a sua natureza ou qualidade.
Uma vez que o movimento esteja dividido, a luta pelo controle hegemônico - ou, se quiserem, pelo poder pura e simplesmente - determina conflitos que ultrapassam quaisquer programas ideológicos ou plataformas políticas.
A própria origem e os interesses de classe dos participantes, como teorizam os marxistas clássicos, ficam muitas vezes em segundo plano em relação à tentação de deter o controle e o prestígio no processo que define e delimita as realidades políticas. Isso explicaria em parte a formação das burocracias "acima das classes" e dos interesses imediatos, assim como um conseqüente distanciamento do poder político de suas bases e origens sociais. Explicaria ainda o seu decorrente isolamento acima da sociedade, gerando novas realidades e interesses próprios dos que estão instalados nesse nível - o comissariado. Esse é um dos germes do totalitarismo.
Um exemplo de tema delicado, fonte de inevitáveis conflitos no interior da própria esquerda, está justamente nessa origem do totalitarismo e na sua relação com as estratégias e táticas para derrotar o capitalismo. Para alguns políticos e intelectuais de esquerda, a própria palavra "totalitarismo" não deveria ser mencionada, pois pertenceria ao vocabulário da direita.
Ora, isso é dar privilégios à direita para pensar a questão, além de constituir uma proibição absurda: se a palavra não é usada, então o problema não existe. Vamos varrê-lo para debaixo do tapete? Argumentam que discutir publicamente a questão do totalitarismo existente sob o chamado "socialismo real" seria dar armas e força para os inimigos da esquerda.
É uma clara denegação, um faz-de-conta defensivo que pode recobrir, não por acaso, motivos sinistros de monopólio da palavra e de mando. Para a direita, dirige-se a crítica. Para a esquerda, destina-se o silêncio. Esses argumentos passam por cima da célebre concepção do próprio Marx e do bolchevique Lênin, segundo a qual "a verdade é revolucionária".
A questão do poder continuará a dividir a esquerda e a confundir a opinião pública se os seus políticos e intelectuais não tiverem a coragem de fazer um balanço crítico profundo do chamado "socialismo real" e do próprio marxismo, abandonando as mistificações do passado e os auto-enganos do presente.
Enquanto não tivermos a ambição de renovar as tradições iluminista e socialista nascidas das revoluções Francesa, de 1789, e Russa, de 1917, não existirão propostas sólidas para enfrentar conseqüentemente a crise econômica e política do capitalismo. Não haverá como oferecer alternativas legítimas e efetivas que sustentem o sonho revolucionário.
Enquanto evitarmos discutir a questão central da autonomia da esfera política e da necessidade de uma reflexão séria sobre a possibilidade de uma prática democrática radical, entendida como a auto-instituição explícita da sociedade, sem ceder um milímetro na crítica do totalitarismo, não haverá alternativa séria às instituições das chamadas "democracias" liberais, na verdade oligarquias tecnocráticas e empresariais manipuladas por managers, lobistas e marqueteiros políticos para defender os interesses de uma minoria rica e poderosa.
Não faltam propostas de esquerda contrárias a uma revisão da esquerda. É o caso daqueles autores ainda na moda, como Slavoj Zizek e Alain Badiou, apresentados ironicamente como a renovação do pensamento esquerdista pela sua defesa de uma "hipótese comunista". Eles são, na verdade, pelo retorno ao leninismo e ao maoísmo. Querem recuperá-los. Sustentam que qualquer crítica bem fundamentada do stalinismo ou das diversas imposturas terceiro-mundistas, pseudo-nacionalistas e ditatoriais das últimas décadas, é suspeita e só serve para justificar as "democracias" liberais.
Em lugar de procurar definir claramente o que é uma instituição democrática e como praticar radicalmente a democracia, deixam o monopólio do discurso anti-totalitário e a própria iniciativa política para as forças conservadoras. Fazem a alegria dos agentes do Capital, os Robin Hood ao contrário, como os daquele brilhante filme de Costa Gravas: incentivam os que roubam dos pobres para tornar os ricos cada vez mais ricos.
* Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Psicólogo e Doutor em Filosofia pela USP. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com
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