Entre nesta crítica, sem preconceitos. Só quem já viu o filme ou leu o romance sabe no que vai dar.
Jeremy Irons dá vida brilhantemente ao personagem principal.
Por Lev Chaim, de Amsterdã*
Foi a minha segunda viagem; a segunda vez que vi o filme e quase não tenho palavras para descrevê-lo, tamanho o meu contentamento. Mas, vou começar e veremos no que vai dar. Desta vez, foi em uma sala de arte, pequena, minúscula, onde todos se sentavam frente a um telão improvisado, com as cadeiras avulsas, que podiam ser colocadas aqui ou ali. Éramos trinta e a sala estava lotada. E assim, partimos mais uma vez para a Lisboa do escritor Pascal Mercier e do diretor do filme homônimo Billie August.
O filme foi baseado no romance de Peter Bieri, ou melhor, Pascal Mercier - seu pseudônimo literário -, quando não escreve livros de filosofia. Na edição holandesa do romance, logo no início, ele publicou um pensamento do escritor Fernando Pessoa: "Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que dele se alegra ou padece. Na vasta colônia de nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente".
E tudo isso me remeteu às palavras do escritor tcheco, Karel Capek, autor de ficção científica, o primeiro a publicar a palavra "robô" em seus escritos, que parece ter dito a mesma coisa, mas de outra forma: "Talvez a nossa história já se tenha desenrolado e estejamos agora a deslocar as nossas peças com os mesmos movimentos, rumo às mesmas derrotas".
Pascal Mercier não só escreveu aquela história, como também inventou uma outra, em coautoria com o personagem procurado pelo professor, o médico Amadeu de Almeida Prado, que teria lutado na resistência portuguesa contra a ditadura de Salazar.
Bebia cada palavra do ator Jeremy Irons - o professor Raimund Gregorius, um suíço de Berna, que dava aulas no liceu local de línguas antigas. Ele foi a Lisboa, à caça das pessoas da história de Almeida Prado, na sua luta contra a Pide – a polícia secreta salazarista.
Jeremy Irons, ator de raça à moda da estupenda atriz italiana Silvana Mangano, ou como dizem muitos - a Meryl Streep de calças -, deu tal vida ao personagem principal, Raimund Gregorius, como ninguém mais o faria, acredito eu.
A sua maneira de se mirar no espelho, arrumar os aros grossos do óculos sobre os olhos, a mudança radical ao descobrir o pequeno livro "Ourives das Palavras", de Amadeu de Almeida Prado, tudo era música para o cérebro e o coração. Até mesmo as suas pequenas mudanças faciais adjetivavam aquele personagem intrigante.
Ao ir para Lisboa, Raimund Gregorius saiu da letargia sufocante de sua vida em Berna, onde fazia tudo automaticamente, com exceção das aulas no liceu, para investigar os personagens daquele pequeno livro que tanto o intrigou. Foi uma mudança radical para a sua "vidinha" em Berna. Ele até deixou de ser a pessoa “enfadonha” tal qual a sua esposa o chamava.
Nesta busca dos personagens do "ourives das palavras", Raimund (Jeremy Irons) se abre para novas experiências, inclusive a do amor, já sem o menor receio de ser "enfadonho". Se geralmente os filmes ficam muito a desejar ao livro no qual se baseiam, o que me parece até óbvio, o "Trem para Lisboa" não! Ele ganhou vida nova na tela, nas mãos do diretor Billie August e com aqueles atores.
E também brilharam outros atores, inclusive a veterana impecável Charlotte Rampling – que fez a Adriana, irmã de Amadeu do Prado. Tudo foi um estímulo eletrizante para o cérebro, tal qual faziam os antigos filósofos gregos ao recitarem os seus pensamentos. Até me lembrei de uma frase de Sócrates, quando Raimund partiu para Lisboa, sem qualquer aviso prévio: "Coragem é uma persistência meditada".
Foi como se ali, naquele momento, naquela pequena sala improvisada de cinema, houvesse revisado os meus objetivos de vida, assumido outras vidas, inspiradas por aqueles belos e intrigantes personagens.Não que considere a minha vida chata, mas, o carregamento de energia positiva advinda do filme fez bem ao cérebro.
É como se renascêssemos para olhar as nossas vidas com outros olhos. E tudo parece ter ficado diferente, mais profundo, até mesmo o copo de vinho tinto, ao lado dos amigos, após o filme. A temporariedade da vida parecia não mais perturbar o pensamento, transformando-se num objetivo a ser atingido com dignidade.
Não queria falar do filme nem do livro, mas da experiência de tê-los visto e lido. Agradeço de coração ao tímido filósofo Peter Bieri, (Pascal Mercier – autor do romance que originou o filme); ao diretor da película Billie August e produtores. Até a fotografia do filme ajudou na reconstituição da história toda.
E agradeço também aos fabulosos atores que vestiram a vida daqueles personagens com tamanha dignidade, compaixão, como se eles jamais tivessem sido outros do que aqueles que representavam ali. Até mesmo os mortos tinham "vida" neste romance de Pascal Mercier e no filme de Billie August.
Meu cérebro e coração não conseguem pensar outra coisa, já há dois dias, após ter assistido ao filme pela segunda vez. E confesso outra coisa: estou aqui, agora, em companhia do livro, o qual vou reler, mais uma vez, com todo cuidado possível.
A única diferença do filme e do romance, por incrível que pareça, foi a "casa azul" em Lisboa. No filme, ela é um palacete de cores desbotadas e no romance um palacete azul, uma ficção. Mas nem isto fez diferença. A energia ganha de um como de outro foi a mesma. Mas, eu confesso uma coisa: desde que li o livro, já tentei duas vezes achar a casa azul na capital portuguesa, mas sem sucesso.
Assistir ao filme pela segunda vez foi como se o sol tivesse entrado pela minha janela naquela noite invernal, cinza da Holanda. Ou será que foi o Anjo Gabriel, que sempre circula na presença de Deus?
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Rádio Internacional da Holanda, país onde mora. Escreve às terças-feiras no Dom Total.
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