quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Casa, dinheiro e carreira

O momento em que não nos vemos mais como incendiários, mas como bombeiros num mundo acovardado.


Quem emprega quer empregar e ter espaço na garagem para o carro do ano.
Por Ricardo Soares*

Lá vem mais clichê: não é fácil envelhecer, sobretudo quando a alma calçou de vez os arroubos da juventude e você não se vê nunca na condição de bombeiro mas de extemporâneo incendiário num mundo pacificado (ou acovardado?) onde o melhor é ir a favor da marola e não deixar claro o que se pensa. 

Parece-me que na minha profissão nunca se controlou tanto a opinião alheia. Quem emprega quer empregar também os seus pensamentos, padronizar e pregar os seus "achismos" na cruz comum da mediocridade que é o trinômio  "casa, dinheiro do, carreira" com espaço na garagem para o carro do ano. Como é desumano o mundo globalizado. Não alimentem ilusões. As confusões das ruas nesse país de cordeiros te m muito menos a ver com direitos e mais a ver com direitos de consumo. É a estética do "cobrador" Rubem Fonseca onde o protagonista pobre cobra com sangue tudo aquilo a que os ricos tem direito.

A noção do pecado sucumbe, passando pelo triste filtro do senso comum. Sou um homem comum que fala como um desesperado, pois talvez ainda busque as palavras para definir minha indignação diante dos desmazelos a que o mundo moderno nos obriga. Todos, ou a maioria, temem o imprevisto, o frio na barriga, toda e qualquer situação fora do mínimo controle. Somos uma porção de bolhas dentro de um shopping center cósmico que é esse planeta que finge aceitar as diferenças para apenas explicitá-las mais. Cansei, amigos. Cansei das vaidades literárias, das vaidades intelectuais, dos fashion weeks existenciais ou da roda da fortuna do momento. 

Cansei das obviedades, das ideologias, dos valores das classes médias, das praças de alimentação e dos engarrafamentos obtusos. Cansei do tempo que não vivi entre os automóveis, cansei de repetir os mesmos padrões, cansei inclusive de olhar meus cães com mais ternura do que a muitos seres humanos irremediavelmente irracionais. Cansei das autoridades policiais, das personalidades do mundo corporativo e publicitário, cansei de ver o padrão otário ditar as regras, cansei dos verbos "malhar", "badalar", cansei de ouvir "balada", "Sampa", cansei de minha própria obviedade.  

A energia elétrica falta, mas eu estou aceso. Choveu mas não me molho. Meu lábio racha mas não sangra. Tenho manchas no passado mas o futuro conspira novos acertos. Meus dentes continuam tortos mas estão limpos e firmes embora alguns eu tenha perdido. Perder, a gente sempre perde, até quando acha que ganha. A lição de cretiníssima auto-ajuda que lhes digo é esta. E também que não há nada  que você peça que o destino não se esforce para lhe dar. O que está é na sua mão. E o coração às vezes tem que estar na cabeça.Se a gente quer, enfim, que algo ainda aconteça além de casa, dinheiro e carreira.
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor , roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor , entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

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