Na guerra às drogas, a ignorância da sociedade ainda é o adversário mais perigoso.
Problemas do País estarão resolvidos se a Cracolândia for exterminada? (Foto: Arquivo) |
Por Reinaldo Lobo*
A guerra às drogas em escala mundial foi um invenção do ex-presidente dos EUA, Richard Nixon, no auge de seu poder, início dos anos 70. Ganhou sua maior intensidade sob Ronald Reagan, que substituiu a Guerra Fria pela caça a colombianos e latinos em geral. Hollywood os acompanhou criando nas telas verdadeiros monstros do narcotráfico e surgiu toda uma indústria civil- militar- eclesiástica- psiquiátrica- editorial. Houve uma mobilização desde a CIA até aos consultórios, autores de livros e hospitais especializados em recuperação de pacientes viciados ou aditos. Junto, veio um certo "charme" das próprias vítimas da drogas. Um amplo imaginário em torno das substâncias psicoativas foi fabricado nas últimas quatro décadas.
Ambos, Nixon e Reagan, viam as drogas e o narcotráfico como a causa da degeneração do império norte-americano, tal como a entendiam -- hippies, caos urbano, criminalidade interna, máfias, desemprego, prostituição, jogo e corrupção. Nunca perceberam que a causa não eram as drogas, mas justamente a proibição, semelhante à Lei Seca que gerou os Al Capone, e a própria "guerra às drogas".
Aqui no nosso Brasil, uma parte da opinião pública e alguns políticos conservadores ao estilo de Nixon e Reagan, parecem ter a mesma visão estreita. Para eles, todos os problemas do País estariam resolvidos, inclusive os morais, se a Cracolândia fosse exterminada como se matam pragas ou ervas daninhas. E suprimida da paisagem urbana.
A nossa Cracolândia reúne, na sua versão paulista, pequenos traficantes e viciados na droga mais barata entre as mais potentes, o crack. Sua população é de verdadeiros mendigos e de pessoas física e psiquicamente necessitadas de ajuda médica e social.
As várias políticas adotadas para diminuir a incidência do crack nas grandes cidades oscilaram entre a repressão pura e simples, com a prisão de traficantes e de usuários, e um discurso pseudo-científico a favor da internação forçada e da remoção dessas pessoas para lugares mais distantes dos centros urbanos. Essas políticas fracassaram.
Entre os fatores do fracasso estaria a conivência e participação de parte da polícia na redistribuição de drogas, além da proteção a traficantes. Não foi por acaso que aquele colombiano preso no Brasil, Abadia, declarou numa entrevista -- "Se quiserem acabar com o narcotráfico fechem o Denarc". É difícil saber se é possível acusar o Denarc ou se parte dele tem responsabilidade nisso. Afinal, Abadia é um criminoso condenado. Mas o homem também é um "expert" no assunto.
Sabe-se que, de um modo geral, o índice de recuperação de usuários de crack, uma droga devastadora a médio e longo prazo, é no máximo de 20%. E os melhores esforços com os resultados mais exitosos foram conseguidos mediante uma estratégia de tratamento ainda muito desconhecida no próprio Brasil e na América Latina, com exceção, hoje, mais uma vez, do corajoso Uruguai.
Essa estratégia provoca polêmica porque vai contra o senso comum e a opinião estabelecida, inclusive nas categorias de médicos, psicólogos e assistentes sociais.
Os mais ignorantes e os defensores da manutenção da estúpida guerra ao narcotráfico, que já custou muitas vidas no mundo inteiro, são os que mais repudiam a citada estratégia, que se chama "Redução de danos".
Existe inclusive uma Associação Internacional de Redução de Danos (IHRA), que a define como "um conjunto de políticas e práticas cujo objetivo é reduzir os danos associados ao uso de drogas psicoativas em pessoas que não podem ou não querem" parar de usar drogas imediatamente. Por definição, a redução de danos enfoca na prevenção aos danos, ao invés da prevenção do uso de drogas. Além disso, enfoca nas pessoas que seguem usando drogas.
A redução de danos já existia há tempos, desde os anos 60, mas ganhou uma dimensão maior depois que se reconheceu a ameaça da disseminação do HIV entre e a partir de pessoas que se drogam. Em muitos países, a percepção de que a AIDS era transmitida inclusive pela circulação de seringas entre usuários de heroína e cocaína injetáveis levou à adoção de uma política de distribuição de seringas descartáveis. No Brasil , foi na cidade de Santos, no litoral paulista,onde o índice de casos de contaminação era alarmante nos anos 80, que foi aplicada pela primeira vez essa política mais tolerante sob a administração da prefeita Telma de Souza, com a elaboração do médico David Capistrano. Foi em dezembro de 1989 a implantação pioneira de um programa de redução de danos no País.
Com a menor publicidade dos casos de AIDS, depois que surgiu o famoso coquetel de tratamento para esse tipo de doença, muitas autoridades quiseram eliminar os programas de redução de danos, pois já seriam "desnecessários". Não levaram em consideração os resultados interessantes e paradoxais dessa política, que nunca se resumiu a entrega de remédios, seringas ou outros substitutos paliativos, mas se estendia a uma atenção psicossocial mais ampla, envolvendo equipes multidisciplinares.
O mais curioso é que, sendo tratados com tolerância humanitária, paciência terapêutica, reduzindo os efeitos colaterais de sua adição e uma progressiva diminuição de doses que combatia a abstinência brutal, os usuários começavam a reagir positivamente e procuravam largar a própria droga. Os chamados índices de êxito, de 20% nos casos de crack, foram resultado, sobretudo, dessa nova política. Nos casos de cocaína e heroína, chegaram a 60/49%.
Logo, equipes de brasileiros que se formaram em institutos como o Marmottan, na França, um dos pólos pioneiros no mundo, passaram a ampliar o leque de atenção social e pessoal aos usuários, incluindo restauração da dignidade, reconhecimento, higiene e mesmo psicoterapia.
A resistência dos sistemas gerados pelo complexo policial-laboratorial-psiquiátrico contra o programa de Redução de Danos tem sido enorme. A ignorância e o preconceito, o temor de que represente um estímulo à adição, a estupidez das soluções meramente policialescas que querem suprimir o vício pela violência, como aqueles pais que pedem para a polícia prender seus filhos para lhes "dar um susto" --- tudo isso faz parte desses sistemas de intolerância à Redução de Danos.
Existem também os profissionais que vivem de aterrorizar as famílias com o fantasma das drogas, os "consultores" que descrevem em livros e programas de TV um roteiro de pistas para descobrir qual dos filhos de uma família poderia estar usando maconha ou qualquer outra substância. São, muitas vezes, os mesmos que não param de prescrever outras drogas, estas legalizadas, para crianças e adolescentes.
Muita gente vive da guerra às drogas, por isso ela não acabará facilmente no Brasil. Uma demonstração disso foi o espetáculo, há alguns dias, da invasão da região apelidada pela mídia de Cracolândia em São Paulo.
Os policiais civis do Estado (Denarc), a pretexto de prender pequenos traficantes, sabotaram um trabalho de vários meses do programa de "Braços Abertos" da Prefeitura da cidade, que é uma tentativa de combinar a redução de danos, psicoterapia, cidadania e assistência social aos usuários.
O programa vinha sendo um sucesso. Gerou ciúmes políticos e ameaçou os sistemas de resistência à mudança. Esse foi o principal motivo da invasão e da pancadaria que se seguiu, ferindo usuários e obrigando-os a fugir das autoridades o mais longe possível.
O pior é que esse tipo de atitude, às vezes apoiada por uma parte desinformada ou conservadora da opinião pública, nos coloca a uma imensa distância de um Uruguai, de uma Dinamarca ou de uma Holanda, cada vez mais civilizados. A ignorância é uma droga perigosa.
* Reinaldo Lobo é psicanalista, psicólogo e jornalista. Tem um blog: imaginarioradical.blogspot.com
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