Se tivesse Rita recebido os Dez Mandamentos, com certeza, eles virariam uma lista enorme.
Por Lev Chaim*
Uma comediante holandesa, em um show de teatro, disse uma coisa que, à primeira vista, me fez rir: um riso espantado e curioso. Mais tarde, dei boas gargalhadas. Perguntei-me como que alguém podia inventar tais gracinhas.
Entre uma cena e outra, ela perguntou ,de supetão ao público, por que foi Moisés que subiu à montanha para receber os Dez Mandamentos das mãos de Deus e não uma mulher?
De pronto, ninguém imaginou uma resposta. A comediante, com um sorriso maroto nos lábios, acrescentou: "Se fosse mulher, ela não teria descido da montanha com apenas Dez Mandamentos, mas, com uma lista enorme que poderia chegar até mais de 100, o que complicaria tudo, é claro". A plateia delirou e eu ri junto. Longe de mim pensar que as mulheres complicam as coisas, pelo contrário. Mas, naquela hora, foi engraçado.
Daí a algumas semanas, recebi a visita de uma ex-vizinha, Rita (é claro que adaptei seu nome). Ela veio me contar as últimas novidades de seu novo namoro. Ambos são viúvos: ela com 69 anos e ele com 76. Em um período de dois anos e meio, ela teve um total de quatro relações.
A visita durou uma hora e, durante o tempo todo, ela não parou de falar. Em um momento, já quase dormindo na cadeira, pedi licença e liguei a televisão com a desculpa de ver o resultado da partida, Ajax–Sparta. Mesmo assim, ela continuou o seu monólogo num tom excitado e estridente. "O namorado queria se casar, mas ela não; se casasse, perderia a pensão de viúva do falecido", disse ela, para logo acrescentar: "Talvez, só na igreja".
E tem mais. "O namorado era feio, mas rico e atencioso”. Enquanto contava tudo isto, ela mostrou-me a gargantilha de ouro que havia ganho do dito cujo. Quando ia abrir a boca para comentar a joia, ela já havia trocado de assunto. "Estamos com planos de reformar a casa dele para morarmos juntos e queremos ir a Roma e à Suíça", e a muitos outros lugares.
Cansado da minha última viagem, aquela prosa de Rita, que já durava cerca de uma hora, colocou-me ainda mais exausto. Pedi licença e disse que tinha que dormir porque a segunda-feira seria brava. Sem saída, mas ainda falando pelos cotovelos, ela também levantou-se, despediu-se e disse que qualquer dia traria o namorado para que eu o conhecesse.
"Claro, traga-o para que o alerte para o perigo de se apaixonar por uma mulher ainda bonita e namoradeira como a senhora", disse eu. Feliz e com a cabeça cheia de planos, sem prestar a mínima atenção ao meu mau humor, ela partiu toda sorrisos. Voltei para a sala desafogado e joguei-me no sofá. Bendito silêncio. Estava mesmo exausto.
Foi aí que me deu um clique, ao lembrar-me da explicação da comediante holandesa, porque foi Moisés quem subiu a montanha e não uma mulher. É claro que nunca podemos saber ao certo o que teria ocorrido, caso fosse uma mulher a subir o Monte Sinai para receber os Mandamentos de Deus, em vez de Moisés, o mais humilde de todos os profetas.
Mas, de uma coisa, tenho certeza: se, em vez de Moisés, tivesse sido a Rita a subir o Monte, os Dez Mandamentos teriam, sem dúvida, se transformado em uma lista enorme. E, pior do que isso. Todos eles teriam sido inventados, já que ela não teria dado tempo a Deus para dizer alguma coisa. E mesmo se Ele tivesse dito algo, acho que ela não teria prestado a atenção devida.
A seguir, o telefone tocou. Era a minha irmã, para perguntar se já havia descansado da viagem. Após contar-lhe tudo sobre a visita de Rita, ela me chamou de egoísta e acrescentou: "São pessoas como a Rita que fazem com que a gente se esqueça um pouco dos problemas deste mundo". Ao desligar o telefone e ligar a TV para assistir ao jornal, por incrível que pareça, já estava quase bendizendo o falatório de Rita. Tchau e até a próxima semana.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o portal Dom Total.
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