segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Viagem ao tempo em que não se queimava ônibus

Tempo em que as pessoas ainda se cumprimentavam nas ruas e na porta dos elevadores.

Por Ricardo Soares*

Estamos dentro de um ônibus, talvez, na Avenida Nove de Julho, em São Paulo. Talvez o ano seja 1968 ou 1969, em que o país vivia em perigo, mas o moleque de pouco menos de dez anos sequer sabia disso. Esse menino, hoje um desalentado cinquentão, tenta narrar essas cenas longínquas emprestando, mal e porcamente, técnicas narrativas apreendidas com Érico Veríssimo, Stephen King, Paul Theroux e muitas outras variações estilísticas. Aflora aos olhos que pouco aprendeu com elas mas tenta.

Então, tentemos voltar aos terminais de ônibus ali na praça das Bandeiras, ao fim da Nove de Julho, bem ao lado do Edifício Joelma, consumido pelo fogo em 1974 e que tantas vítimas deixou. Os ônibus que ali vemos são azuis e brancos, focinhos compridos, motoristas e cobradores simpáticos na sua maioria. O assento dos bancos é de um vermelho vivo, todos limpos e, apesar de já existirem muitos carros nessa São Paulo que um dia será inviável, eles se respeitam e ainda é possível se almoçar em casa, na Vila Olímpia, para quem trabalha ali no centro.

Como são tempos bicudos, não pode se dizer que seja uma cidade cordial. Mais pela truculência do regime militar que persegue os adversários do que pelo paulistano em si, que ainda se cumprimenta nas ruas e na porta dos elevadores. Ainda existe a Livraria Gazeau e o antigo desenho da Praça Clovis e da Sé. O velho centro não está decadente e o avô do menino reverbera suas alegrias ali na Salada Paulista de onde, em fins de tardes de sábado, sai cambaleante e cheio de pacotes, justamente para o terminal de ônibus na Praça das Bandeiras. Não corre o risco de ser assaltado, vilipendiado e arremessado do alto do viaduto do Chá.

Estamos agora eu, você e esse avô dentro de um ônibus indo para a ainda pouco habitada Vila Olímpia. É uma remota tarde de sábado e, creio eu, o homem ainda não chegou a lua e o Brasil ainda não ganhou a copa de 1970. Súbito, ali perto da praça dom Gastão Liberal Pinto, do lado da igreja de São Gabriel, um grupo de manifestantes com paus, pedras, caras raivosas e galões de gasolina cerca o ônibus, entra violentamente em seu interior e aos gritos mandam todos sair. Batem no motorista, insultam o cobrador. O menino sentado ao fundo do banco segura a mão do avô e o tranquiliza.

- Calma, vô. O que você está vendo não é. Por pior que seja, aqui em São Paulo, em 1968 ou 69, ninguém tira as pessoas à força dos ônibus para tacar fogo em tudo. Isso só vai acontecer daqui há muitos anos. Sossega.

Assim sendo, o avô botou fé, sobreviveu, voltou ao cochilo e morreu em 1982, sem ver cenas lamentáveis como a que enxerga o seu neto, aos 54 anos,  numa São Paulo cada vez mais incendiária e incendiada.
* Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

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