sexta-feira, 28 de março de 2014

1964: Inútil Paisagem


No dia da gravação ninguém apareceu. As ruas estavam desertas, ocupadas por militares.

Por Carlos Ávila*

"No dia marcado para a gravação" – conta o violonista e compositor Roberto Menescal – "busquei a Wanda em casa, o técnico de gravação e o Sérgio Barroso, o contrabaixista. Fomos pro estúdio, no centro da cidade. As ruas estavam vazias. Conseguimos vaga em frente ao estúdio. O técnico tinha a chave e a gente entrou. Não havia ninguém lá, nem a orquestra tinha ido. Enquanto a gente esperava, ficamos passando o som, com baixo, guitarra e voz".

“Mas pra quê/Pra que tanto céu/Pra quê tanto mar, pra quê/De que serve esta onda que quebra/E o vento da tarde/De que serve a tarde/Inútil paisagem...” – a voz suave da cantora Wanda Sá, quase um sussurro, acompanhada apenas pela guitarra de Menescal e o baixo de Barroso, foi gravada pelo técnico. Ninguém apareceu, eles fecharam o estúdio no centro do Rio de Janeiro e foram embora; na volta perceberam as ruas ainda desertas e os militares. Era, simplesmente, o dia do golpe de 1964! O golpe que agora está completando 50 anos e que infelicitou - com tortura e censura - o país por duas décadas.

A bela canção de Tom Jobim (com letra de Aloysio de Oliveira) ficou registrada na voz de Wanda num clima musical único, com o som de Menescal lembrando de perto o estilo de Barney Kessel (1923/2004) – o grande guitarrista de jazz norte-americano – nas gravações com Julie London (no álbum “Julie Is Her Name”, uma pequena obra-prima). A faixa integrou o LP “Wanda Vagamente”, um clássico da bossa-nova já reeditado em CD; a gravação cool de “Inútil Paisagem” se tornou cult, difere de todas as outras do disco, com acompanhamento de conjuntos da época (como o de Luiz Carlos Vinhas) ou de orquestra regida por Eumir Deodato.

Certos audiófilos adoram comparar árias de óperas com diferentes cantores líricos; pode-se fazer o mesmo no âmbito da música popular. “Inútil Paisagem” tem algumas gravações históricas e memoráveis: a de Ella Fitzgerald, a de Elis Regina ou ainda a versão em inglês de Sinatra com Tom. Mas, a nosso ver, nenhuma supera a de Wanda Sá – sensibilidade e sensualidade num “sopro de voz”. A composição de Tom é, sem dúvida, uma das mais belas “cantigas d’amor” da nossa MPB (tipo “Ilusão À toa” de Johnny Alf ou “Até Quem Sabe” de João Donato; “Pra Dizer Adeus” de Edu Lobo e Torquato Neto ou “Atrás da Porta” de Chico Buarque; “Esse Cara” de Caetano ou “Beijo Partido” de Toninho Horta, por exemplo).  A gravação de Wanda Sá é uma joia rara, uma espécie de antilembrança de 1964, ano do malfadado golpe militar; uma bela lembrança, ao contrário das botas e bombas que voltam à mente após 50 anos.
*Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto Sentido e Área de Risco (poesia); Poesia Pensada (crítica) e Bri Bri no canto do parque (infantil). Foi, por quatro anos (1995/98), editor do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Trabalhou também na Rede Minas de Televisão e foi editor do caderno de cultura do jornal “Hoje em Dia”. Participou de mais de vinte antologias no país e no exterior.

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