quarta-feira, 26 de março de 2014

Pai de gêmeas

Aos 10 anos, elas me ameaçam sorridentes com duplo golpe: já pensou, pai, nós duas com TPM?

Por Celso Adolfo*

Tenho gêmeas. Uma se exibe mais e se impõe porque "sou três minutos mais velha que você".  A outra tem outras armas: menorzinha, dá chute na canela, parte pra cima, argumenta sem medo, é capaz de uma enchente verbal incomum e ininterrupta. Anulando-se, mudam de assunto. Falam da escola, de One Direction e da beleza dos meninos ingleses. Imbatíveis no inglês de orelhada, decoram e cantam várias músicas deles, declamam enorme texto tipo rap que introduz uma delas. Sabem onde nasceram Louis, Zayn, Liam, Harry e Niall. Namoram alguns deles, sabem do que gostam e me põem a gostar disso tudo. Ouvindo tudo, prometo que vou aprender e tocar "Little things" pra elas. Promessa, neste caso, é muito mais do que dívida.

Aos dez anos elas me colocam diante de coisas que estão em prateleiras mais altas do que podem meus braços. Sob tenso e intenso esforço, arranho paredes e me elevo cinco centímetros. Cinco centímetros para alcançar o que elas pensam, esperam e precisam.

Vida transcorrendo, vida segue cobrando o que devo a ela e às minhas meninas. Piscina ou mar, elas querem nadar; vendo primos e primas nos intercâmbios, querem fazer intercâmbio. Uma delas já decidiu: vai fazer intercâmbio em Salvador. A outra aceita outros destinos: serve Canadá, Disney ou Inglaterra, país do One Direction.

Estive perto delas durante nove dos dez anos que elas têm hoje. Dei todos os banhos desde que a enfermeira nos entregou aqueles dois pacotinhos trêmulos. Curei os dois umbigos e os enterrei na Querença. Ainda vigio a lavação do pé sujo, da orelha, das mãos e a escovação dos dentes, o para-casa. Levo-as ao colégio e as busco, diariamente. Ouço o que aconteceu na sala, no recreio, quem gosta e não gosta de quem, os bafos da turma. Assisti às dolorosas despedidas das professoras da primeira para as séries seguintes e até chorei numa dessas também. 

Pentear cabelo eu não sei. Desembaraçar, nem pensar. Levar ao salão eu levo. E espero. Esperar é verbo com ou sem complemento. Esperar meninas num salão exige complemento a qualquer verbo: paciência. Pois, quatro horas depois, tudo resolvido, surgem os esmaltes. Duzentas cores deles. Qual você acha mais bonito, papai? Elas escolhem. Corriqueiramente compro calcinhas, meias, material e uniforme escolar; agora, os sutiãs. Sentindo-se mais crescidas, elas me ameaçam sorridentes com duplo golpe: já pensou nós duas com TPM? Eim, pai, já pensou? Não, não vou pensar nisso.

Sempre fui convocado a tocar violão para elas. Mas só na hora de dormir. É para chamar o sono, que flutua lentamente com seu peso de pena de passarinho cerrando aqueles olhinhos de jabuticaba. Elas não têm preferência de repertório, até porque eu as acostumei com a ideia de que é bom deixar o seu pai, o violão e a música resolverem o que um fará do outro. Solfejo melodias que aparecem na penumbra do quarto. Algumas somem. Algumas permanecem ali para as noites seguintes. De um tempo pra cá elas pedem "oh jardineira, por que estás tão triste?" Abaixo o tom, diminuo o andamento da marchinha, que fica triste e doce.Canto e toco enquanto lembro que essa era a música que meu pai dedicava à minha mãe, em Nova Era e depois em São Domingos do Prata. 

A clarineta, o violino, o sax e o violão de Sô Zequito jamais suspeitariam que outro violão acrescentaria à "jardineira" umas carícias para que duas meninas caíssem no sono ouvindo a música de namoro dos avós que elas não conheceram. 

Quando a pena e o passarinho pousam o sono nelas, saio pisando leve, e toco mais um pouco no meu quarto.
*Celso Adolfo é compositor.

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