De todas as formas de morrer involuntariamente, o envenenamento tem sido a mais usada
Marco Lacerda*
De todas as formas de morrer em mãos alheias, o envenenamento é uma constante na história do mundo. Ninguém sabia disso melhor que Massiel, a cantora espanhola, ao cantar os versos: “Tive três maridos e aos três envenenei com umas gotinhas de cianureto no café.” Sabia disso também a inglesa Mary Ann Cotton que, na metade do século 19, eliminou pelo menos vinte familiares com arsênico.
E repete agora a catedrática Adela Muños Páez, da Universidade de Sevilha, autora de ‘História do veneno’, um livro capaz de deixar o leitor grudado na cadeira com seus relatos sobre a prática ancestral de fazer desaparecer o próximo, sempre motivada por três fatores: poder, dinheiro e paixão.
A obsessão em conseguir o improvável enche as página do livro de Adela, que repassa desde os venenos de Estado para executar condenados (a cicuta empregada para eliminar Sócrates, o curare usado por índicos descrito pelo conquistador Francisco Orellana e o cloreto de potássio do tempo dos aiatolás do Irã) até o cianureto de que se serviu o matemático Alan Turing para suicidar-se.
Recordemos Sócrates no momento da sua execução descrita por Platão: “Quando o veneno chegar ao coração será o fim”, disse Sócrates e logo seu começou a gelar. Descobrindo a cabeça já encapuçada, lembrou: “Críton, agora me lembro que devemos um galo a Asclépio”. “Será pago, não duvide”, respondeu Críton. “Deseja alguma coisa mais? Mas Sócrates já não respondeu.
Através dos séculos desfila uma salada de assassinatos durante o império romano, a proliferação do veneno na corte do Luis 14, durante o século 17, as mil fórmulas secretas dos alquimistas e as poções malignas de feiticeiras medievais, herdeiras de curandeiras da antiguidade que logo seriam caçadas e queimadas.
Sem falar, claro, do cianureto, que alcançou seu recorde de uso nas câmaras de gás durante a II Guerra Mundial, exterminando milhares de pessoas em horas, e da estricnina, a preferida de amantes abandonadas e criadas ressentidas. Vinte séculos depois da morte de Cleópatra, no final de outra guerra, o veneno pôs fim à vida dos derrotadas, embora de forma menos poética que a escolhida pela rainha egípcia, ao deixar-se picar por uma serpente. Muitos nazistas cometeram suicídio assistido, uma forma profética de eutanásia.
A Espanha tem um repertório invejável desse tipo de prática, além de deter o recorde de precocidade assassina no ramo. O recorde está nas mãos de uma menina de 12 anos, Piedad Martínez, que chocou o país ao matar quatro irmãos mais novos em um mês, em 1965. Para consumar tamanho prodígio usou uma mistura de cianureto com mata-ratos, polidor de metais e DDT, um inseticida à base de claro. A última condenada à morte na Espanha foi uma servente, Pilar Prades, em 1959. Envenenou a patroa e tentou fazer o mesmo com duas outras pessoas.
O precursor do antídoto mágico
O rei Mitrídates VI foi um precursor na busca incansável de um antídoto universal contra os venenos. Para isso, converteu-se ele mesmo em investigador e cobaia. Escravos e prisioneiros para testes ele tinha de sobra. Ainda jovem arquitetou um plano para sobreviver a possíveis envenenamentos: tomar diariamente pequenas quantidades de toxinas, um princípio similar que séculos mais tarde levaria ao descobrimento das vacinas. Ao final de suas pesquisas acabou por desenvolver uma beberagem quase perfeita, pois quando decidiu morrer veneno nenhum era capaz de matá-lo. Teve que ser degolado por um parente.
Sobre os venenos que invadiram a alimentação nos dias de hoje a química Adela Muños Páez diz: “Preocupam-me não só os venenos cotidianos, mas as informações alarmistas sobre eles. Sou uma defensora ardente do papel que a química desempenha em nossas vidas. A expectativa de vida multiplicou-se por três graças aos produtos farmacêuticos de que hoje dispomos”.
A quem fala mal da química Adela pede que imagine uma dor de dente no século, 19 quando só se podia contar com os opiáceos ou uma fratura aberta sem o auxílio de cianureto. Sem mencionar que a maior causa de morte em certas regiões do mundo segue sendo a transmissão de enfermidade pela água não potável. Um pouco de cloro bem usado mudaria drasticamente a expectativa de vida na África e em muitos países asiáticos.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e Editor Especial do Domtotal
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