segunda-feira, 7 de abril de 2014

Santa Fé que move montanhas

Se hoje é um paraíso, no passado a cidade viu de perto a primeira explosão atômica.

Por Marco Lacerda*
Santa Fé situa-se no norte do estado do Novo México, nas montanhas da Serra Sangre de Cristo, que fazem parte da Cordilheira das Montanhas Rochosas. Além da beleza natural, o que sobressai imediatamente em Santa Fé é sua arquitetura particular. Ao contrário de outras cidades americanas, é muito fácil encontrar casas com mais de 200 anos em Santa Fé. O Palácio dos Governadores (1610) e a Capela de São Miguel (1626) são respectivamente o edifício governamental e a igreja mais antigos dos Estados Unidos.
As casas castanhas feitas de argila ou adobe, raramente com mais do que dois níveis, seguem fluidamente as linhas dos terrenos em que se encontram, resultando numa integração quase mágica com a paisagem natural. Vigas expostas de madeira escura, janelas e portas de madeira, pintadas tipicamente de azul berrante, oferecem um contraste, provavelmente de origem mediterrânea, com o que são essencialmente formas nativas encontradas em construções pré-coloniais nesta área.
Os Anasazi e os povos do Vale do Rio Grande
Pouco se sabe sobre as populações nativas do Novo México anteriores a 1300. Hoje em dia essas populações são conhecidas como o povo Anasazi, um termo dos índios Navajo que significa "os antigos", ou na realidade "os antigos inimigos". Existem vários parques nacionais americanos dedicados a preservar as ruínas das habitações deste povo, que ocupou o sudoeste americano entre os séculos I a XII. Exemplos destes parques são o Bandelier National Monument em Los Alamos, perto de Santa Fé e o parque da Mesa Verde no Colorado.
No Los Alamos National Laboratory, estão as cavernas que em tempos longínquos foram habitadas pelos Anasazi. Estas cavernas, que se estendem ao longo dos inúmeros canyons por muitos quilômetros, como dedos saindo das montanhas Pajarito (um vulcão pré-histórico) que formam Los Alamos, são adornadas por estranhíssimos petroglifos que transportam a uma realidade pré-histórica completamente diferente da europeia.
Os Anasazi foram um povo agrícola que cultivava milho, abóbora e feijão nos vales frescos dos canyons das montanhas Pajarito. Sabe-se também que caçavam ursos, veados, texugos, e outros animais selvagens americanos. Além disso, são conhecidos pelo fabrico de potes de barro adornados por traços de uma estética muito própria. Ainda hoje, pedaços destes potes se vêm pelos inúmeros trilhos usados pelos andarilhos desta área. Pouco se sabe da sua cultura, além das grutas que usavam para rituais espirituais no topo de algumas montanhas. Uma destas grutas está preservada em excelentes condições no Bandelier National Monument.
Cidade Real
O "Reino do Novo México" ficou sob a Coroa Espanhola em 1540 graças ao conquistador Don Francisco Vasques de Coronado, que por curiosidade, descobriu também o famoso Grand Canyon no estado vizinho do Arizona. Em 1598 foi entregue o cargo de Governador Geral a Don Juan de Onate, que estabeleceu a capital do Novo México no Pueblo de San Juan a cerca de 40 kilometros ao norte de Santa Fé.
Após Don Onate se retirar em 1609, o novo Governador Geral, Don Pedro de Peralta, decidiu criar uma nova capital, num local onde colonos espanhóis se tinham instalado desde 1607, à qual chamou Villa Real de la Santa Fé de San Francisco de Assis. É desde então que Santa Fe, como é agora conhecida, se manteve como capital do Novo México.
Santa Fé cresceu e prosperou como cidade. O governo e os missionários, sob pressão de ataques constantes de tribos índias nómadas como os Comanche, Apache, e Navajos, fizeram uma aliança com os povos nativos do Vale do Rio Grande, mantendo-se uma política muito proveitosa de coexistência pacífica civil e religiosa.
O Caminho de Santa Fé
Em 1821 o México tornou-se independente da Espanha, e o Novo México passou a ser uma província do México, o que transformou completamente o clima de comércio de Santa Fé. Até aqui, a Coroa Espanhola manteve uma política de império fechado, que não permitia quaisquer trocas comerciais com outras nações com interesses na América como a França, a Inglaterra e, mais tarde, os Estados Unidos.
Com a independência, o comércio foi aberto a mercadores americanos. William Becknell abriu então o famoso Caminho de Santa Fe (The Santa Fe Trail) de 1500 quilómetros desde Arrow Rock no Missouri. Por esta altura os Estados Unidos terminavam perto de Arrow Rock, nas margens do Rio Mississippi em St. Louis (capital original da província francesa da Louisiana que tinha sido recentemente comprada ao Rei Francês).
Entre 1837 e 1840, o Novo México ficou independente do México devido a uma revolta de agricultores, que durou três anos. Durante este período, o comércio com os Estados Unidos intensificou-se, trazendo muitos novos habitantes de culturas europeias para a região o que começou a complicar as relações culturais.
Em 1845 os Estados Unidos professavam a doutrina do Destino Manifesto (Manifest Destiny), termo criado pelo diplomata John Louis O´Sullivan para condensar a noção de que a expansão territorial americana mais do que inevitável, era um desejo divino. Esta doutrina levou eventualmente à guerra com o México e à anexação do vizinho Texas. Naturalmente o Novo México teria que ter um destino semelhante.
Cidade de artistas e milionários
Outra faceta de Santa Fé é a sua reputação como cidade de artistas. Desde o início do século Santa Fé tem sido um refúgio de pintores, escultores, escritores, músicos, e artistas de artesanato de calibre internacional. Escritores tais como D.H. Lawrence, Mary Austin, Jack London, e Ezra Pound viveram ou visitaram frequentemente a região. Pintores como Edward Hopper e Marsden Hartley, e o fotógrafo Ansel Adams, viveram em Santa Fé nas décadas dos anos 20 e 30.
Talvez a mais conhecida de todos os pintores que passaram por esta região seja Georgia O´Keeffe que lá viveu de 1930 a 1986, quando faleceu com 98 anos de idade. As suas pinturas de flores e paisagens locais são os seus melhores cartões postais da cidade. Hoje em dia Santa Fé alberga mais de 150 galerias de arte que mostram trabalhos de alguns dos mais reputados artistas internacionais.
Mais recentemente, Santa Fé tem atraído muitos artistas de Hollywood, tais como Julia Roberts e Gene Hackman entre muitos outros, que aqui vivem grande parte do ano. Alguns destes artistas vieram ao encontro de uma forma de vida mais espiritual, uma vez que esta área é famosa por atrair todo o género de actividades "New Age" e paranormais, bem como uma grande variedade de religiões alternativas. Afinal, Roswell, a famosa terra onde segundo o folclore moderno foi despenhada uma nave espacial extra-terrestre, está a uns 70 qilómetros de Santa Fé. Com certeza por isso Shirley MacLein fez de Santa Fé a sua casa.
Além de artistas, Santa Fé atrai também muitos milionários que por aqui vêm descansar de rotinas desgastantes. Por esta razão, Santa Fé possui alguns dos melhores restaurantes dos Estados Unidos, bem como inúmeros estabelecimentos onde se pode encontrar tudo o que qualquer yuppie possa desejar, sem nunca estar a mais do que alguns poucos metros de poder saborear alguma permutação de cappuccino com um "mocha latte" ou sushi vegetariano.
Beleza natural e esportes
Quando o Novo México se tornou um estado da união americana, muita gente foi atraída pelo clima seco (50% de humidade relativa média) de Santa Fé, como cura para a tuberculose. Mas não se pense que o Novo México é apenas um deserto cheio de cactos. Devido à altitude a cidade (a cerca de 2000 metros acima do nível do mar) conta com quatro estações distintas, incluindo Inverno com neve, flores selvagens na primavera e verão e as cores vibrantes das folhas que caem no Outono.
Com mais do que 300 dias de sol por ano, o clima é ideal para praticar um grande conjunto de esportes ao ar livre. O inverno é conhecido por um frio muito seco mas tolerável, o que torna a neve da região muito leve, perfeita para a prática do ski. O Verão é conhecido pelos seus dias quentes e noites frescas. De fato, mesmo no verão é aconselhável usar um casaco leve à noite, apesar das temperaturas diárias normalmente ultrapassarem os 30ºC. A maior parte da chuva cai no verão, tipicamente entre as 4 da tarde e 8 da noite, devido a um clima de monção muito particular.
Num raio de 90 kilômetros de Santa Fé encontra-se uma série de parques e florestas nacionais, extremamente bem cuidados pelo governo federal americano. Nestes parques, alguns ao longo do vale do Rio Grande, encontram-se muitas áreas especialmente preparadas para a prática do canoismo e outros esportes aquáticos num cenário deslumbrante. O ciclismo, alpinismo, montanhismo, e caminhismo são também amplamente praticados nesta região.
Los Alamos e a bomba atômica
Los Alamos, 6 de Agosto de 1945. "Attention please! Attention please! One of our units has been successfully dropped on Japan." Foi assim que a bomba, de alcunha "Little Boy", que destruiu Hiroshima foi anunciada nos autofalantes da então cidade secreta de Los Alamos. Hoje em dia a cidade é dominada pelo Los Alamos National Laboratory. No Museu Ray Bradbury podem-se ver réplicas das bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki.
Em 1922, o famoso professor da Universidade da Califórnia em Berkeley, Robert Oppenheimer, passou pela região praticando montanhismo. Em 1941, depois de Einstein ter avisado o Presidente Rooselvelt de que os cientistas de Hitler andavam purificando uranio-235 para construir uma bomba atómica, Oppenheimer foi encarregado pelo governo americano de escolher um lugar isolado para um laboratório onde se iria desenvolver a primeira bomba atômica.
Foi então que Oppenheimer se lembrou de um colégio de rapazes nos arredores, que mandou fechar para abrigar os cientistas e militares que faziam parte do projeto Manhattan. Na madrugada do dia 16 de Julho de 1945 o segredo foi aberto com a detonação da primeira bomba atômica no deserto do sul do Novo México, o Trinity site. A fronteira da idade atômica tinha sido ultrapassada.
"Um passeio por Santa Fé". Veja o vídeo.
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal

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