sexta-feira, 25 de abril de 2014

Viajando no quarto

O escritor francês Xavier de Maistre (1763/1852) sugeriu 'uma nova maneira de viajar'

Carlos Ávila*
Existem viajantes móveis e imóveis. Os primeiros estão sempre de malas prontas para partir em qualquer direção, fascinados pelo movimento, pela mudança de ares e lugares; os segundos ficam quietos no seu canto, preferem viajar mentalmente, sem o incômodo de enfrentar o trânsito nas estradas (muitas vezes pesado e perigoso), ou ainda as filas, atrasos e outros aborrecimentos nos aeroportos – viajam, muitas vezes, contemplando a natureza, ouvindo música, fumando ou lendo um livro.
O escritor francês Xavier de Maistre (1763/1852) sugeriu “uma nova maneira de viajar”, sem deslocamento, dentro do próprio quarto. Sua proposta de trip está num pequeno e delicioso livro chamado “Viagem em Volta do Meu Quarto”, editado no final do século 18 (há duas traduções para o português, uma mais antiga de Marques Rebelo e outra, mais recente, de Sandra M. Stroparo, que saiu pela Ed. Hedra). Segundo Maistre, “o prazer que se sente ao viajar em seu quarto está a salvo da inveja inquieta dos homens, e independe da fortuna”. Mais adiante ele escreveria também a “Expedição Noturna em Volta do Meu Quarto”.
O livro de Maistre guarda um sabor de novidade. Seus capítulos são curtos e o conteúdo bem variado, indo da sua cachorrinha poodle até questões filosóficas ou psicológicas. O autor faz muitas reflexões e digressões incluindo uma curiosa teoria da “alma” e da “besta”, ou ainda o papel dos amigos em nossa vida e sua falta com a morte. Um procedimento moderno dessa ficção algo inclassificável (que nada tem a ver com a forma tradicional do romance) é a metalinguagem, utilizada pelo autor na abertura do volume e na passagem de um capítulo a outro (ele fala sobre o próprio livro que está escrevendo e “conversa” com o leitor; a própria “narrativa de viagens” é questionada).
A “viagem de câmara” de Maistre – no fundo “um grande embate entre o conforto intelectual do confinamento e o desejo pelo mundo de fora”, segundo a observação precisa de Stroparo – repercutiu inclusive no Brasil. Machado de Assis nas suas “Memórias Póstumas de Brás Cubas” é fortemente influenciado pelo autor francês que ele chega a citar na nota inicial ao leitor (comparem-se, por exemplo, os radicais capítulos XII da “Viagem” e 55 das “Memórias”, com a utilização moderníssima da visualidade e da síntese verbal). Machado classifica a escrita de Maistre como “forma livre”.
O “barato” de Maistre acaba sendo também o daquele que o lê, que vai sendo envolvido lenta e prazerosamente pelo seu estilo fragmentário e suas provocativas elucubrações. O livro de Maistre é um convite ao devaneio: good trip leitor.
*Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto Sentido e Área de Risco (poesia); Poesia Pensada (crítica) e Bri Bri no canto do parque (infantil). Foi, por quatro anos (1995/98), editor do “Suplemento Literário de Minas Gerais”. Trabalhou também na Rede Minas de Televisão e foi editor do caderno de cultura do jornal “Hoje em Dia”. Participou de mais de vinte antologias no país e no exterior.

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