Racismo não é liberdade de opinião e pensamento, é um crime contra a humanidade.
Por Reinaldo Lobo*
Entre todos os clichês racistas ouvidos sobre o episódio de agressão aos jogadores de futebol negros na Europa, tem um que ganha o prêmio. É o seguinte: os que atiram bananas no campo teriam o direito de fazê-lo em nome da "liberdade de opinião e de pensamento" e, portanto, dos Direitos Humanos. Como se vê, o cinismo não tem limites e se constitui numa verdadeira política.
Esse brilhante raciocínio implica em que os negros que foram humilhados, explorados, espancados, escravizados, mortos, separados de suas famílias, de sua cultura, privados da educação formal e de todos os mínimos direitos durante séculos, agora deveriam continuar sendo humilhados dentro da lei e dos mais sagrados direitos do homem. Ora, essa alegação é, em todos os sentidos, falsa. Mas há um ponto em que se vê sem saída: os racistas têm mesmo o direito de pensar o que quiserem, no entanto, não podem se comportar como discriminatórios, pela simples razão de que o racismo é um crime contra a humanidade.
Tenho mostrado nestes meus artigos como o conservadorismo inverte os argumentos dos defensores da liberdade, da igualdade e da fraternidade entre os homens, e se apropria falsamente deles mascarando-se de novidade, como progressista e moderno. Reacionários de todos os tipos, alguns dos quais não aceitam sequer a Declaração dos Direitos do Homem da ONU, apresentam-se hoje como "neo" ou "pós" alguma coisa.
Não há mais liberais, defensores do "laissez faire" e do capitalismo do "salve-se quem puder" lá do século XIX. Não, hoje existem os Neo Liberais, defensores do "laissez faire" e da selvageria de mercado.
Não há mais defensores do nazismo e do fascismo; existe uma Nova Direita Nacional (França) , Direita Democrática (Alemanha e Áustria), Liga Lombarda e União Nacional( Itália),etc.
Aliás, não há mais stalinistas também. Agora são "pós-marxistas" ou defensores do "marxismo tardio".
Essa "novilíngua" digna de um Big Brother (o de Orwell, não o da Globo) é toda montada sobre uma negação do sentido real das palavras.
Um outro argumento comum entre racistas e conservadores em geral é algo assim: "A igualdade racial poder ser verdade na teoria; mas na prática é falsa". O seu correspondente na política de direita é : "O socialismo é bonito na teoria, mas na prática é um fracasso", pois o equaliza com o stalinismo.
Do ponto de vista lógico, isso é um sofisma , pois se aceitam os fundamentos mas negam-se as conseqüências. Está em contradição com a regra: "a ratione ad rationatum valet consequentia" ("da premissa à conseqüência a conclusão é obrigatória"). Essa afirmação, como nos lembra Schopenhauer, expressa algo que é impossível -- o que é certo na teoria tem de sê-lo também na prática. E ,se não o é, há uma falha na teoria, algo foi ignorado e não foi avaliado; portanto, é falso também na teoria. Ou seja, os racistas são simplesmente contrários à igualdade racial, e os conservadores abominam o socialismo tanto na prática quanto na teoria. Sua retórica atual é uma falsificação do discurso.
Já sabemos quais os mecanismos psicológicos do racismo, acionados por narcisismo, inveja e ódio. Narcisismo, porque se funda na idéia de que se o outro é inferior, desprezível, o sujeito é superior e admirável. Raça superior, classe superior, etc. Inveja porque ataca qualidades do outro que o sujeito não possui ou acredita que não tem. Ódio, porque é preciso expelir, e afastar pelo mecanismo de projeção, usado abundantemente nesses casos. Projetam-se no outro partes indesejáveis do próprio sujeito, vistas como pertencentes ao outro e ameaçadoras, tais como sujeira, imperfeição, intenções malévolas, impulsos assassinos, sexualidade promiscua. Em outras palavras, o outro vira depositário dos desejos inconfessáveis do sujeito racista.
A justificação pública do racismo, porém, é o que mais chama a atenção no momento. É o fenômeno novo, e praticada em nome da "liberdade". Esse truque engana as pessoas e está quase arraigado no senso comum.Uma pesquisa feita há alguns meses pela TV Cultura de SP consistia em perguntar às pessoas na rua :"Onde você esconde o seu racismo?" O mais surpreendente é que não houve nenhum entrevistado que dissesse :"Não escondo porque não sou racista!". Apanhados de surpresa, os entrevistados não hesitavam em dizer: "Disfarço bem", "Escondo no fundo da alma" e outras pérolas desse tipo. O racismo existe, mas o fato de existir não o torna legítimo. Como costuma ser violento e ofensivo, a resposta em geral é de medo, retraimento ou enfrentamento igualmente agressivo.
Certo esteve Dani Alves, nosso meia-direita da Seleção Brasileira e peça chave do Barcelona, ao apanhar a banana que lhe atiraram aos pés e comê-la em público, antes de bater um escanteio.. Muitos chamaram seu gesto de elegante e de reação nobre. Não foi só isso. Talvez ele próprio não saiba, mas usou uma arma poderosa da política e da mudança dos costumes em todos os tempos -- a ironia.
A sua atitude adequada e na medida, com um toque de brincadeira, esvaziou e ridicularizou a ofensa. Os racistas que queriam atiçar o ódio, acabaram passando vergonha, pelo menos aos olhos do público que o aplaudiu logo após. E o crime de racismo saltou à vista de todos.
Já Sócrates -- não o jogador mas o grego antigo--, chamava o seu método filosófico de "irônico", a famosa "ironia socrática", pois deixava o interlocutor perplexo, sem argumentos válidos para responder e suspenso diante de uma verdade. A sua atitude crítica demonstrava sucessivamente a inconsistência de todas as razões apontadas pelo adversário nos diálogos. Esvaziava, retirava a força e colocava em sua devida dimensão as razões do interlocutor. Isso o embaraçava de tal modo que o obrigava à descoberta de uma verdade que não era sua própria verdade prévia.
O interlocutor de Sócrates sucumbia à sua ironia que, muitas vezes, consistia em levar a sua fala às últimas conseqüências ou até ao ponto do absurdo (redutio ad absurdum). Sem resposta, o interlocutor ou tentava rebater sem sucesso ou, então, se calava diante da própria "aporia" ( um beco sem saída argumentativo). Em sua persistência em revelar a verdade por meio da ironia, Sócrates era incômodo ao ponto de ameaçar o poder da época na Grécia. Isso o levou à morte. Como se vê, a ironia pode ser bem arriscada e perigosa.
Gandhi, o Mahatma, mestre da não-violência, usou muitas vezes da ironia para envergonhar os ingleses e obrigá-los a reconhecer a independência da Índia, que então englobava numa colônia o território que hoje também é o Paquistão. Quando era acusado de criminoso pelas leis dos colonizadores, Gandhi se apresentava para ser preso e usava os tribunais como palanque. Atingiu o seu objetivo dessa maneira, mas, evidentemente, isso só funciona com adversários capazes de se envergonhar, com algum grau de democracia e civilidade. Hitler teria matado Gandhi na primeira vez em que fosse ridicularizado. Stálin mandou matar todos os que o ironizaram e, numa leva, fuzilou os principais cartunistas da então URSS, que o pintavam com uma carantonha ameaçadora e intitulavam o retrato de "Doce Paizinho dos Povos".
O gesto de Dani Alves provavelmente não envergonhou os seus detratores racistas, pois estes parecem toscos ao ponto de acreditar na violência como única forma de comunicação. Mas envergonhou as platéias que se identificaram secretamente com os racistas e que, no entanto, são suficientemente civilizadas para não se comportarem como tal e que se consideram democráticas. A máscara da hipocrisia caiu, como aconteceu com o almirante inglês Lord Mountbatten, último vice-rei da Índia, o qual , após a independência indiana, teria confessado ao próprio Gandhi: "Atiramos em vocês porque os considerávamos seres inferiores. Mas vocês nos derrotaram".
Com o simples gesto de comer uma banana em pleno jogo, Dani Alves teve uma atitude consagrada pela História. Usou a arma da crítica e não precisou recorrer à crítica das armas.
*Reinaldo Lobo é psicanalista e jornalista. Tem uma página pública no Face book: http//:www.facebook.com/reinaldolobopsi e um blog: imaginarioradical.blogspot.com
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