Já é possível recriar em laboratório o Homem de Neandertal, do qual os humanos descendem.
Por Svante Paabo*
Não cheguei a conhecer meu avô paterno. Ele morreu vítima da gripe espanhola em 1919, aos 30 anos, antes que seus filhos e netos pudessem conhecê-lo. Meu avô era um matemático brilhante e, como cientista, tenho enorme curiosidade de saber como ele era. Como consolo, me apego ao fato de que ele vive em mim. Afinal, um quarto dos meus genes vem dele.
Vovô tem estado presente na minha mente nos últimos anos, quando meu grupo de pesquisa e eu começamos a trabalhar no projeto de sequenciar o genoma de um Neandertal, o parente mais próximo de todos os seres humanos de hoje em dia. Como parte desse trabalho, sequenciamos o genoma de um pequeno osso encontrado numa caverna da Rússia, perto da fronteira com a China. Esse genoma veio de um parente dos Neandertais desconhecido até então – um grupo que batizamos como Denisovans.
Esses genomas ancestrais mostram que os Neandertais eram geneticamente muito parecidos conosco. Aliás, no que diz respeito aos genomas, algumas pessoas de hoje em dia estão mais próximas dos Neandertais do que de outros tipos do passado. Comparando o genoma neandertal com o da humanidade moderna, identificamos um total de 31.389 mutações genéticas comuns a todos os humanos de hoje. Este número relativamente pequeno poderia ser chamado de “receita genética” dos humanos modernos.
Entre essas mutações podem se esconder diferenças sutis entre os Neandertais e nós, fato que pesquisas mais avançadas poderiam explicar. Por exemplo, embora os Neandertais, extintos há 30 mil anos, produzissem ferramentas de pedras e dominassem o fogo, eles nunca desenvolveram uma tecnologia e uma cultura que se difundissem através do planeta, como fazem os humanos.
Esse genomas antiquíssimos revelaram também que Neandertais e Denisovans se misturaram com os ancestrais diretos da gente de hoje depois que eles transpuseram as fronteiras da África. Portanto, se suas raízes estão na Europa ou na Ásia, entre 1 e 2 por cento do seu DNA vem dos Neandertais. Se a sua procedência é Papua Nova Guiné ou outras partes da Oceania, 4 por cento do seu DNA vem dos Denisovans.
Há muito o que aprender com essas contribuições genéticas, pois elas têm consequências na aparência física e nas doenças que as pessoas de hoje contraem. Mas estas são fronteiras que nossa investigação não deve transpor.
Alguns cientistas, entre as quais George Church, professor de Genética da Faculdade de Medicina de Harvard, defendem a ideia de que deve ser levada em conta a possibilidade de usar a sequência do genoma dos Neandertais para estimular as células-tronco humanas a produzir, geneticamente, embriões Neandertais a serem implantados numa mulher ou numa chipanzé, para recriar indivíduos Neandertais.
Descanse em paz, vovô!
Isto foi o que me fez pensar no meu avô, já que eu carrego parte do material genético dele e morro de curiosidade de saber como ele era. Se eu gostaria de exumar seus ossos e usar as técnicas que temos desenvolvido para criar um “gêmeo monozygous” dele, que nasceria 95 anos depois de sua morte?
Como minha resposta é não, por que seria diferente em relação a um Neandertal? Afinal, Neandertais eram seres humanos sencientes. Numa sociedade civilizada não deveríamos nunca criar um ser humano com o objetivo de satisfazer uma curiosidade científica. Eticamente falando, isso devia ser condenado.
De qualquer forma, tal ideia seria tecnicamente possível? Embora as sequências genômicas ancestrais sejam incrivelmente precisas, elas cobrem apenas dois terços do mapa genético dos Neandertais. O terço restante é composto de sequências que existem em duas ou mais cópias do genoma.
Como o DNA preservado em ossos antigos se esfacelaram em pequenos pedaços, não é possível dizer de que cópias dessas sequências repetidas eles vêm. Portanto, é impossível reconstruir exatamente como elas eram organizadas no genoma Neandertal.
Para minha frustração, essas sequências repetidas podem ser importantes para saber como o nosso genoma funciona. Nossa “receita genética” é e provavelmente permanecerá assim.
Encontrar a base biológica que tornou os seres humanos únicos responderia a uma das perguntas fundamentais da nossa história: porquê só um tipo humanos se espalha pelo planeta, substitui todas as demais formas humanas e multiplica-se a ponto de influenciar toda a biosfera?
Podemos abordar tais questões por caminhos eticamente defensáveis e tecnicamente possíveis, usando células-tronco – não para criar indivíduos, mas para criar células e tecidos no tubo de ensaio. Isso permitiria, por exemplo, inserir genes Neandertais conectados às funções de células nervosas nas célula-tronco humanas, reprogramá-las para se tornarem neurônios e estudar em laboratórios o comportamento desses neurônios neandertalizados. Algumas dessas alterações podem explicar como as células nervosas transmitem sinais entre si e como processam os sinais recebidos.
Talvez muito do que compartilhamos ou não com os Neandertais pode ser revelado dessa maneira. Vamos focar em tais experimentos, não na recriação dos Neandertais nem na recriação do meu avô. Que ele descanse em paz.
Confira o vídeo "Namorado neo-neandertal":
*Svante Paabo, geneticista evolucionário do Instituto de Antropologia Evolucionária Max Planck, é autor do livro “Neanderthal Man: Em busca de genomas perdidos”. Este artigo foi publicado originalmente no New York Times. A tradução é de Marco Lacerda, editor-especial do Domtotal.
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