Algo aconteceu de errado no sacerdócio católico, em relação à proteção de crianças.
Mais uma vez a Igreja Católica teve que ouvir uma repreensão pública feita por uma agência das Nações Unidas decorrente de casos envolvendo abusos sexuais infantis cometidos pelo clero, e mais uma vez ela respondeu com um tom de inocência ferida. Estes confrontos são tão embaraçosos quanto improdutivos, e pouco acrescem ao efetivo cuidado para com as crianças. O último caso diz respeito à conformidade da Santa Sé para com a Convenção contra a Tortura.
A comissão da ONU encarregada de supervisionar a aplicação desta convenção decidiu tratar os casos de abuso infantil como uma forma de tortura e responsabilizar institucionalmente a Igreja Católica por eles. Dado o sofrimento mental duradouro que o abuso sexual em geral causa, esta decisão se encontra dentro dos limites razoáveis da definição. Contestar, como o porta-voz do Vaticano fez, é sugerir que, ainda hoje, as autoridades não entenderam a gravidade destas questões.
Não obstante, os fatos nos quais a Convenção contra a Tortura se baseia são, na prática, os mesmos que levaram uma comissão similar da ONU – que supervisiona o cumprimento da Convenção dos Direitos da Criança – a chegar a uma conclusão semelhante no começo deste ano. Não está claro o que esta repetição atinge. Em cada caso a comissão fez a equação simples de que o Vaticano é igual a Santa Sé, o que isso, por ser o mais próximo que a Igreja chega de um governo central, se iguala a Igreja como um todo.
Tentativas feitas por representantes eclesiais para desfazer esta confusão em bases jurídicas foram, mais uma vez, postas de lado. E no senso comum, incluindo o de muitos católicos, tais distinções não se relacionam com a questão central. Algo aconteceu de muito errado dentro do sacerdócio católico onde a proteção das crianças estava envolvida; a vergonha se espalha por todos os lugares; e ninguém no comando foi responsabilizado.
As duas comissões da ONU são, provavelmente, as duas únicas arenas internacionais na qual a Igreja pode ser chamada a prestar contas. Nos últimos 10 anos, disse o Vaticano esta semana, 848 padres foram laicizados por motivos desta natureza, e 2.572 foram destituídos do ministério ativo. O que o Vaticano não disse é que o número total de bispos destituídos de seus postos por negligência com os abusos infantis é zero, embora uns poucos tiveram sua situação facilitada com uma aposentadoria precoce confortável.
Estes eram os diretores executivos das dioceses onde padres pedófilos atuaram. Os papas têm poderes ilimitados para desligar bispos, e podem até mesmo passar por cima de seu direito natural de realizar um julgamento justo. Este poder existe para um propósito: salvaguardar o bem da Igreja. Por excelência, isso deve incluir o bem dos fiéis mais vulneráveis.
O que a Santa Sé pensou que estava fazendo quando originalmente subscreveu estas duas convenções da ONU? Será que não sabia que estava se submetendo à supervisão das agências de monitoramento? Ela não percebeu que a “jurisdição universal imediata” que todo o papa pode exercer sobre a Igreja, como definido no Concílio Vaticano I, o torna responsável por cada crime ou contravenção na Igreja? Isso impõe o dever de se ver a justiça ser feita em cada caso, incluindo a aplicação de sanções. De fato, é irônico que uma medida aprovada em 1870 como parte do engrandecimento do papado, o ponto alto do ultramontanismo, se virou contra este para trazê-lo ao descrédito. Uma recuperação depois destes escândalos só poderá, de fato, começar a partir do momento em que o Vaticano encarar, realmente, este fato doloroso.
The Tablet, 08-05-2014.
Nenhum comentário:
Postar um comentário