As férias entraram na lógica do consumo. Consumimos o 'tempo-livre'
É preciso ser distraído para viver - Paul Valèry
Rafael B. Barbosa*
Finalmente podemos bradar como o herói de nossa gente, ai, que preguiça! Vivemos um tempo de descanso estendido por ocasião dos recessos do mundial de futebol acoplado às férias escolares de Julho. Mal começa esse período e inúmeras postagens nas redes sociais sobre o tão sonhado momento aparecem. As pessoas seguem compartilhando a tão esperada pausa na rotina sufocante.
Que as férias são um tempo excelente, isso não há dúvida. Contudo, observando mais demoradamente, nos perguntamos: por que esperamos tanto as férias? A vontade de ter o precioso "tempo livre" não seria sintoma do sufoco que passamos em tempos de trabalho, portanto, em tempos de não-liberdade? A pergunta também se volta ao momento próprio das férias: será que sabemos descansar? O que realmente nos descansa? O que fazemos no "tempo livre”? Ao ver essa alegria dos períodos de férias invadir nossa atmosfera, ficamos a nos questionar sobre a vida ordinária que temos.
Um primeiro fato que nos salta aos olhos é o binário "tempo-livre" que usamos para dizer quando não estamos trabalhando. Tal concepção nos pode dar a entender que há um tempo "não-livre". Se associarmos ao "tempo-livre" os períodos de descanso, podemos dizer que o tempo "não-livre" seria o tempo de trabalho. Parece óbvio a ideia de que quando estamos trabalhando não seríamos livres, contudo, a vibração com que proclamamos o tempo de férias leva-nos a desconfiar que, talvez, hoje, o tempo de trabalho esteja para além da não-liberdade, ou seja, aproximamo-nos de algo que beira a uma espécie de escravidão remunerada.
Nessa ânsia pelo descanso - sintoma da mais profunda alienação em que vivemos - revela-nos que somos filhos do ócio. Desejamos essa falta de tarefa. Buscamos estar com quem gostamos, seja família, amigos, colegas. Queremos os momentos gratuitos de estar juntos simplesmente por estar junto. Visamos a momentos em que não se precisa justificar nada. Entretanto, nossa vida tem se passado no revés do ócio.
Atualmente, temos a impressão de viver barrocamente. O barroco como arte do preenchimento é metáfora da nossa vida cotidiana. No Barroco não há espaço para o vazio. Tudo é detalhado e bem preenchido. Assim como o Barroco, em nossa sociedade há uma busca frenética pelo preenchimento dos espaços e dos tempos. Nós nos acostumamos a ser tomados por uma agenda apertada desde a infância. Aprendemos a lidar com o excesso de atividades, nós nos desenvolvemos em agilidades múltiplas. Precisamos prever, programar, preparar nossa vida para vivê-la intensamente.
Os momentos de férias não estariam livres desse modo frenético que aprendemos desde pequenos. Aquilo que seria o vácuo na agenda transforma-se em mais um programa. Nosso descanso programado e planejado deve ser vivido com tamanha exaustão que pouco sobra ao ócio, ao imprevisto, ao gratuito. Afinal, compramos nossas férias com trabalho e, por isso, precisam render muito. As férias entraram na lógica do consumo. Consumimos o “tempo-livre”.
Se vivemos calcados nas metáforas do planejar, programar, agendar, render, obviamente os momentos de descanso carregam tais matizes. As férias renderam muito, costumamos dizer sem prestar atenção na contradição presente em nossa fala. Férias e rendimento? Fizemos muitas coisas, mas descansamos pouco. Acabamos quase sempre voltando ao trabalho, com a sensação de missão cumprida. Vivamos intensamente nossas férias. Afinal, teremos assuntos, fotos e fatos para comentar e compartilhar nos momentos de não-liberdade que antecedem ao próximo deleite. Conseguimos respirar para viver mais alguns meses no sufoco.
Definitivamente, o herói de nossa gente ficou fora de nossa gente. O ócio, parece não ser bem aceito em nosso meio. Somos da geração que faz! Para isso, diga-nos nossa agenda! Estamos acostumados a entender que o ócio (vazio) é sinal de que algo não vai bem, de que algo deu errado. Ócio é coisa de vagabundo! Aprendemos isso das mais variadas maneiras: na Igreja, na Escola, na Internet, na política (gente que faz, rouba mas faz!). Logo na infância já aprendemos a escrever na folha toda, a pintar todos os espaços em branco, a ter bem definidos os horários e a cumprir nossa agenda estudantil. Ficar sem fazer nada não pode, é vagabundice! Deixar lacunas, jamais! Somos tarefeiros desde crianças. E o herói de nossa gente, Macunaíma, era preguiçoso demais para ser herói.
Nosso desejo de gozar as férias seria o ímpeto primeiro de quem sabe intuitivamente por onde a vida autêntica acontece. Essa busca frenética do período de descanso seria o grito mais humano que a agenda preenchida de atividades tende a calar. Parece-nos que a vida precisa de lacunas, de espaços vazios, de tempo e de liberdade. Talvez, "ai, que preguiça" seja o grito revolucionário mais autêntico de um povo que não se escraviza frente ao imperativo neurótico do tempo preenchido.
Que esse tempo de férias seja vivido como ócio. Como kairós - tempo oportuno - para viajar sem destino, para curtir o inesperado, para deixar o telefone tocar à revelia, para viver o improviso, para oportunizar o encontro, para provocar o desacerto, para não fazer nada, para dormir até doer, para se espreguiçar até dar cãibras, para abraçar, para gozar o presente. Assim, quem sabe acabamos por não temer o ócio e nele encontramos nossa vida revolucionária. Afinal, “são os ociosos que mudam o mundo, pois os outros não tem tempo”, já nos ensinava Albert Camus.
*Mestre em Filosofia pela FAJE (Faculdade Jesuíta) em Ética. Graduação em Filosofia pela PUC-Campinas/SP. Pesquisador de Maurice Merleau-Ponty, da fenomenologia francesa, da filosofia contemporânea. É Professor de Estética/ Filosofia da arte e Filosofia Contemporânea na Faculdade de Filosofia da Arquidiocese de Mariana.
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