segunda-feira, 30 de junho de 2014

Nascer e morrer em cada Copa do Mundo

Como a bola no centro do gramado, sempre somos sujeitos a novos recomeços.

Por Ricardo Soares*

Era inverno, mas parecia, na parede de minha memória, que era uma tarde de outono. Corríamos eu, meu pai, mãe e irmãs em busca de um táxi que nos levasse da Pompéia, bairro paulistano, para a Vila Paulicéia, em São Bernardo do Campo. Era uma corrida cara, mas a ocasião justificava. O Brasil ia disputar o final da Copa de 70 no México. Minhas aflições e lembranças daquele dia se afunilam e misturam. Mas lembro que assistimos o jogo e a sensação de felicidade percorreu nossa vila e nossas vidas por um bom tempo. Eu nem fazia idéia do que acontecia no país. Só desconfiava quando vi as costas lanhadas de chibatas que recebeu o meu professor de Educação Física, um grande contestador. Os grandes embates do futebol marcam para sempre nossas memórias e disso não fujo aqui.

Evocações antigas. Um velho pedaço de manjar sobre a toalha vermelha. De mesa. Uma jarra de suco quebrada. Sobre a pia. Uma panela de pressão com metade de feijão, metade de ar. Guardada na geladeira. Um fogão à beira da exaustão. No chão respingos de pinga. Muito grito parado no ar. Nos anos 70, tudo parecia andar mais devagar. No muro que dá para a casa vizinha, cresce uma samambaia. Uma parreira de uvas está secando acima do piso de cacos de cerâmica  enquanto  um japonês do outro lado da rua estuda contabilidade para passar em um concurso público.

Cai um sereno frio, cachorros baldios latem para os postes com pouca luz e duas mães padecem de bronquite pois as fábricas estão muito perto. Há um rádio ligado ao longe. Outro rádio ligado mais perto. Não estou muito certo de que idade eu tenho. Um primo longínquo já faz a barba e de duas primas brotam seios nos seus peitos. Não entendo nada. Só que me dizem que a pátria é amada e que os cegos não enxergam mesmo a luz.

Passei, talvez ontem, por um buraco cheio de carros que me leva ao outro lado da cidade. Uma zona que é a norte e não é minha. Ali , num prédio entre muitos prédios, esconde-se um tio triste com sua família triste e amuada. Ali tomamos chá e comemos bolo de fubá. Então, de repente, rojões foram ouvidos e cachorros correram pra baixo da mesa.  Mais um jogo de Copa do Mundo. Recolhi minhas lembranças num saco cheio de aniagem e agora as depositei sobre esse balcão. Afinal, não sei se comemoro ou se choro. Cada Copa do Mundo faz com que eu nasça e morra de novo. Como a bola no centro do gramado, sempre somos sujeitos a novos recomeços. Por sorte.
*Ricardo Soares é diretor de TV, escritor, roteirista e jornalista. Titular do blog Todo Prosa (www.todoprosa.blogspot.com) e autor, entre outros, dos livros Cinevertigem, Valentão e Falta de Ar. Atualmente diretor de Conteúdo e programação da EBC- Empresa Brasil de Comunicação.

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