terça-feira, 2 de setembro de 2014

A democracia no século XXI

Joseph E. Stiglitz
Resultado de imagem para Joseph E. StiglitzCom regras adequadas, poderíamos até restaurar o rápido e compartilhado crescimento econômico de meados do século XX

A recepção nos EUA e em outras economias avançadas do recente livro de Thomas Piketty, “O capital no século XXI”, atesta a preocupação crescente com o aumento da desigualdade. Seu livro dá mais peso à já extensa lista de evidências sobre o avanço da concentração de renda no topo da pirâmide.

Joseph F. Stiglitz: a democracia no séc. XXI (Joseph F. Stiglitz: a democracia no séc. XXI (John Minchillo/AP))O livro de Piketty, sobretudo, oferece uma perspectiva diferente sobre os 30 anos que se seguiram à Grande Depressão e à Segunda Guerra Mundial, vendo esse período como uma anomalia histórica, talvez causada pela coesão social incomum que eventos cataclísmicos podem estimular. Naquela era de rápido crescimento, a prosperidade foi amplamente compartilhada, com todos os grupos avançando; mas aqueles no fim da fila tiveram maior ganho percentual.

Piketty também joga nova luz sobre as “reformas” vendidas por Ronald Reagan e Margaret Thatcher nos anos 1980, no papel de promotores de um crescimento do qual todos se beneficiariam. Suas reformas foram seguidas por crescimento mais lento e maior instabilidade global. E o crescimento beneficiou majoritariamente os situados no topo da pirâmide.

Mas o trabalho de Piketty levanta questões fundamentais a respeito tanto da teoria econômica quanto do futuro do capitalismo. Ele documenta grandes aumentos na relação riqueza/produção. Na teoria-padrão, tais aumentos seriam associados a uma queda no retorno do capital e a um aumento nos salários. Mas hoje o retorno do capital não parece ter diminuído, mas os salários, sim. (Nos EUA, por exemplo, os salários médios caíram 7% nas últimas quatro décadas.)

A explicação mais óbvia é que o aumento na riqueza medida não corresponde ao aumento do capital produtivo — e os dados parecem consistentes com essa interpretação. Muito da elevação da riqueza provém de uma valorização no preço dos imóveis. Antes da crise de 2008, uma bolha imobiliária era evidente em muitos países; mesmo agora, talvez não tenha havido uma “correção” total. A valorização também pode representar competição entre os ricos por bens de status — uma casa na praia ou um apartamento na Quinta Avenida, em Nova York.

Às vezes, um aumento na riqueza financeira medida corresponde a pouco mais do que mudança de riqueza não medida para medida — algo que pode na verdade refletir deterioração do desempenho econômico. Se o monopólio do poder avança, ou firmas (como bancos) desenvolvem melhores métodos de explorar os consumidores, isso aparecerá como lucros maiores e, quando capitalizados, como aumento da riqueza financeira.

Mas, quando isso ocorre, é claro, o bem-estar social e a eficiência econômica caem, mesmo se a riqueza oficialmente medida aumente. Nós simplesmente não levamos em conta a correspondente diminuição do valor do capital humano — a riqueza dos trabalhadores.

Sobretudo, se bancos forem bem-sucedidos em usar sua influência política para socializar perdas e reter mais e mais de seus ganhos ilícitos, a riqueza medida no setor financeiro aumenta. Não medimos a diminuição correspondente da riqueza dos contribuintes. Da mesma forma, se corporações convencem o governo a pagar mais por seus produtos (como os grandes laboratórios farmacêuticos conseguiram), ou recebem acesso a recursos públicos abaixo dos preços do mercado (como companhias de mineração conseguiram), a riqueza financeira informada se eleva, embora a riqueza de cidadãos comuns não.

O que temos observado — estagnação salarial e crescente desigualdade, mesmo diante do aumento da riqueza — não reflete o funcionamento de uma economia normal de mercado, mas o que eu chamo de “capitalismo de substituição”. O problema pode não estar em como os mercados deveriam funcionar ou funcionam, mas em nosso sistema político, que fracassou ao assegurar que os mercados sejam competitivos e mantém regras que sustentam distorções, pelas quais corporações e os ricos podem (e o fazem) explorar todo mundo.

Mercados, é claro, não existem no vácuo. Precisam de regras estabelecidas via processos políticos. Altos níveis de desigualdade econômica em países como os EUA e, crescentemente, em países que seguiram seu modelo econômico levam à desigualdade política. Em tal sistema, oportunidades para avanço econômico se tornam também desiguais, reforçando baixos níveis de mobilidade social.

Dessa forma, a previsão de Piketty de níveis mais altos de desigualdade não reflete leis econômicas inexoráveis. Simples mudanças — incluindo taxação mais elevada para ganhos de capital e heranças; maiores gastos para ampliar o acesso à educação; rigorosa observância de leis antitruste; reformas na governança corporativa que limitem o pagamento de executivos; e regulamentação financeira que cerceie a capacidade dos bancos de explorar o resto da sociedade — reduziriam a desigualdade e aumentariam marcadamente a igualdade de oportunidades.

Se tivermos regras adequadas para o jogo, poderíamos até ser capazes de restaurar o rápido e compartilhado crescimento econômico que caracterizou as sociedades de classe média de meados do século XX. A principal questão que nos confronta não é realmente sobre o capital no século XXI. É sobre a democracia no século XXI.



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