segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Será que eu só vou cantar no chuveiro?

20/10/2014  |  domtotal.com

Criou-se a obsessão pela fama entre os jovens. O outro lado da moeda é o castigo do anonimato.

Por Marco Lacerda*
 Quando Andy Warhol profetizou que no futuro todo mundo teria direito a pelo menos 15 minutos de fama, com certeza não tinha idéia das dimensões da indústria que estava inaugurando. A profecia contagiou o planeta através de um vírus que se entrincheirou na corrente sanguínea da humanidade, especialmente na dos mais jovens, tornando-se resistente a qualquer investida de médicos, pais de santo, curandeiros e que tais.

A fama, até então uma entre muitos sonhos do ser humano, passou a ser uma obsessão endossada pelo grande ícone da cultura pop do século passado. Entre um indivíduo famoso e um anônimo estabeleceu-se uma relação singular de natureza distanciada e hierárquica. Os famosos passaram integrar uma elite de referência capaz de ditar valores sociais, e o culto da fama passou a refletir a outra face do grande prêmio: o castigo do anonimato e da marginação social. Foi como se o mundo tivesse se dividido em duas castas, os que atuam e os que observam, embora ambos façam parte do mesmo espetáculo orquestrado pelos meios de comunicação.

Milhões de pessoas ao redor do planeta acompanham com avidez a programas de televisão como Operação Triunfo, Big Brother, Fama e tantos outros, que todos os anos arrancam centenas de jovens do anonimato, alçando-os ao mundo de sonhos de um estrelato em que não é necessário ir à universidade ou aprender algum ofício para vencer na vida. No caso de Operação Triunfo, por exemplo, o prêmio máximo oferecido é a carreira musical. Mas, por estranho que pareça, o sonho dos participantes, muito mais que fazer música, é o reconhecimento público que equipara o famoso com o êxito social.

Aspirante a famoso é um tipo que cresceu ninado pela televisão e aprendeu, desde cedo, que o que não aparece na telinha, não existe. Via de regra são garotas e garotos cansados de ser mais um rosto na multidão de gente descartável que acorda cedo em bairros de periferia e vão suar a camisa em fábricas em troca de salários que acabam muito antes do mês. Estão dispostos a tudo para dar a volta por cima.
Das trevas ao esplendor 

Quando a oportunidade surge é agarrada com unhas e dentes. Selecionados entre milhões de concorrentes para participar de reality shows, novelas ou filmes, os bafejados pela sorte desembarcam em estado bruto nos bastidores da televisão onde, em tempo recorde, vão passar das trevas do anonimato ao esplendor do reconhecimento social chamado fama.

Mas nem tudo é um mar de rosas. Para ficarem na última moda, as mulheres são apertadas, torcidas, injetadas com silicone e muito bem perfumadas – afinal uma mulher sem perfume é uma mulher sem futuro. Os homens passam os dias malhando em academias e nunca acham tempo para freqüentar aulas de arte cênica. Não importa. O que interessa é adquirir músculos que intumesçam ao mero erguer de uma latinha de Coca-Cola diet.

Aliás, nesses tempos em que a palavra diet tornou-se mantra de gerações ao redor do planeta, gordura é sinônimo de fracasso. No universo dos candidatos à fama a tirania é ainda maior. O ideal apolíneo foi elevado a patamares inalcançáveis pelo resto dos mortais. Estar fora do peso ou obeso é um delito intolerável. O resultado de tanta obstinação são garotas siliconadas, voluntariosamente louras, com seios em luta sem trégua com o decote. Ou o oposto: mulheres pálidas, enigmáticas como haikus, com ossos tão pontiagudos que você poderia ferir-se ao tentar beijá-las.

Jamais sofrer acidentes! Esta é uma advertência que vale tanto para eles como para elas, sob pena de se transformarem num monte de solicone retorcido. Se tudo der certo o resultado serão garotas com rostos de querubins e rapazes com corpos que parecem ter sido esculpidos por Michelangelo. Mesmo dentro do caixão, três dias depois de mortos, eles sempre parecerão mais bonitos que a maioria de nós na plenitude da vida.

Alguém definiu celebridade como aqueles que não precisam identificar-se, pois pertencem à aristocracia do êxito social. Têm a pele bronzeada não pelo sol, mas pelo flash dos fotógrafos. Querem o mundo, não um pedaço da terra. Não precisam viajar, o mundo vem até eles. Acabam ficando excêntricos: não choram em casamento e riem em velório. Sentem-se eufóricos ao adentrar uma festa e perceber que os hormônios dos presentes entraram em ebulição.
Universo onipotente
Em casos mais extremos, imaginam-se vivendo num universo onipotente em que matam e não vão para a cadeia, enfrentam desastres de avião em que apenas o cabelo sai desarrumado – e uma série de clichês reservados apenas à ficção. Quando se casam não hesitam em chamar o primeiro filho de Cartier. A meta que uma celebridade oculta até de si mesma é um dia aparecer ao vivo em dois canais de TV ao mesmo tempo. Pode ser verdade. Assim como é verdade que o maior temor de uma celebridade é morrer no anonimato e transformar-se numa alma penada vagando pelo universo sem um iPod para ouvir o último sucesso de Avril Lavigne. E se a fama acaba em vida, muitos tornam-se zumbis portadores de distúrbios psicológicos que nem Freud e Jung poderiam resolver.

A fama hoje é uma construção da comunicação. Heróis e mitos, antigos símbolos da excelência, modulam as celebridades da atualidade convertidas em produtos de consumo através de rituais comunicativos. Os meios de comunicação tornaram-se indústrias de fabricação da fama, ingrediente fundamental na formação da opinião pública e de um potente mercado de canibalismo humano. A mídia promove a exposição de indivíduos capazes de atrair a atenção pública. A profissionalização da fama equivale a um projeto de vida que expressa uma ideologia e uma realidade concreta.

Uma vez estabelecida no mercado, a celebridade passa a dedicar-se à prática, sempre rentável, do “eutretenimento”, ou seja, a capacidade de explorar a própria vida como divertimento público. O efeito mais óbvio do “eutretenimento” são esses personagens que têm seus dramas e amores pessoais transformados pela mídia em telenovelas e em seguida transformam-se a si mesmos em lucrativos empresários de seus dramas e aventuras, em vez de voltar ao anonimato.

Os profissionais do mundo da fama provocam reconhecimento, entusiasmo, respeito. Tudo o que fazem tem valor como publicidade. São reconhecidos com facilidade e deixam suas impressões digitais na história coletiva. O famoso é uma espécie de marionete, entertainer teledirigido que atrai audiências e as mantém cativas num sistema que premia o individualismo e a competição.

A expressão fama agora se situa como um processo transversal decisivo dentro da opinião pública e como fronteira social baseada na relevância na arena midiática. A fama é um prêmio que se mede em visualização e isto, hoje em dia, significa dinheiro. O herói midiático – aquele que materializa a frase “o que não se vê é como se não existisse”– supera a dimensão de auto-afirmação e se introduz num espaço onde sua persona e suas habilidades são um produto econômico, sujeito a leis de mercado, que vende espaços midiáticos.

Dito isto, a ninguém deveria estranhar que as novas gerações tendam a equiparar seres humanos com produtos comerciais e a sociedade com um gigantesco supermercado, pesar das conseqüências desastrosas que já se podem notar. Por exemplo, o ser humano tratado como kleenex: usar e descartar. Exagero? Fantasia? Pode ser. Mas, com uma fantasia dessas, quem precisa da realidade?
*Marco Lacerda é jornalista, escritor e editor-especial do Domtotal.

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