As ações e motivações religiosas inclusivas ganham força na Igreja Católica, apesar de resistências.
Há algumas semanas, o papa Francisco recebeu em sua casa a visita do transexual espanhol Diego Neria e de sua companheira. Este gesto, surpreendente e ousado, é comparável ao do papa João XXIII recebendo a família Krushev, do governante da então União Soviética, considerada por muitos o Império do Mal. É curioso lembrar que há menos de quatro anos circulou a notícia de que o papa Bento XVI, em sua viagem a Berlim, iria receber os líderes do movimento gay. Foi uma piada de 1º de abril com ampla difusão na Alemanha. Agora, o gesto de Francisco supera a imaginação dos que riam do seu antecessor.
Diego nasceu mulher, mas desde criança sentia-se homem. No Natal, escrevia aos reis magos pedindo como presente tornar-se menino. Ao crescer, resignou-se à sua condição. “Minha prisão era meu próprio corpo, porque não correspondia absolutamente ao que minha alma sentia”, confessa. Ele escondia esta realidade o quanto podia. Sua mãe pediu-lhe que não mudasse de sexo enquanto vivesse. E ele acatou este desejo até a morte dela. Diego tinha 39 anos. Um ano depois, ele resolveu começar a mudança de sexo e passar pelas cirurgias necessárias. Na igreja que frequentava, despertou a indignação de pessoas: “como se atreve a entrar aqui na sua condição? Você não é digno”. Certa vez, chegou a ouvir de um padre: “você é filha do diabo”! Mas felizmente teve o apoio do bispo, que lhe deu ânimo e consolo nos últimos tempos.
Isto o encorajou a escrever ao papa Francisco e pedir um encontro com ele.
Surpreendentemente, Diego recebeu um telefonema do próprio papa, e combinaram o encontro. No dia 24 de janeiro, às 17h, o papa o recebeu e o abraçou no Vaticano, na presença da sua mulher com quem ele em breve se casará. Hoje, Diego Neria é um homem em paz.
O papa Francisco já havia declarado, felizmente, que se uma pessoa é gay, busca a Deus e tem boa vontade, não cabe a ele julgá-la. E que não deve ser marginalizar as pessoas por isso, mas integrá-las na sociedade. Ao convocar o Sínodo sobre a Família, ele lançou questões para amplo debate sobre as novas configurações familiares, contemplando inclusive os LGBTs: que atenção pastoral se pode dar às pessoas que escolheram viver em uniões do mesmo sexo? E, caso adotem crianças, o que fazer para lhes transmitir a fé? Numa das assembleias do Sínodo, no Vaticano, um casal australiano contou que recebeu na ceia de Natal o seu filho gay com o respectivo companheiro. Isto escandalizou alguns cardeais e bispos. Ao receber Diego e sua companheira, o papa faz o mesmo que o casal australiano, dando um exemplo extraordinário à Igreja e à sociedade.
Há muito sofrimento decorrente do preconceito, da rejeição e da violência física e verbal contra os LGBTs. Acolhê-los na família e na igreja muda muito a realidade de todos, pois traz um alívio profundo, cura feridas devastadoras e fortalece a autoestima. As famílias e as comunidades eclesiais que os acolhem têm uma chance extraordinária de conhecê-los melhor, e de se libertarem de estereótipos e preconceitos odiosos que só assim podem ser vencidos. A acolhida é um poderoso fermento de mudança na sociedade. E um dos frutos recentes desta mudança já se torna visível: o batismo de filhos de casais homoafetivos. Eles se tornam membros da Igreja, sacramentalmente, com a promessa de serem educados na fé.
No entanto, há também resistências. Pessoas como o padre e os fieis que Diego encontrou, considerando-o indigno e diabólico, estão por toda parte. Há publicações em ambientes católicos, com grande difusão, que caricaturam as questões de gênero e de orientação sexual. Uma delas traz o desenho de um homem sentado se interrogando: “que gênero eu vou escolher para este ano”? E, em outra página, o desenho de um garoto nu olhando para o próprio pênis e se perguntando: “não sou homem? Eu? Então... o que é isto”? Estas caricaturas são injustas e cruéis com os LGBTs. Basta conhecer a história de pessoas como Diego - bem como de tantos gays, lésbicas, bissexuais e travestis - para se dar conta do mal que tais posturas causam e reforçam.
Sabe-se que a teoria de gênero é criticada pelo papa e pelos bispos. Eles temem pela eliminação da diferença entre homem e mulher, que é parte do desígnio divino inscrito na natureza. Mas isto não pode levar, de maneira alguma, a se patologizar as pessoas que não têm atração pelo mesmo sexo, ou que não se identificam com o corpo que nasceram.
É preciso considerar também algumas declarações do papa Francisco em defesa da família, como a mensagem à Igreja da Eslováquia por ocasião de um plebiscito nacional contra o casamento gay, e contra a adoção de filhos por casais do mesmo sexo. Foi uma maneira indireta de o papa se opor a mudanças na legislação civil, num país em que mais de 70% da população é católica. Mas o resultado do plebiscito esteve longe de barrar as mudanças. O comparecimento às urnas não chegou a 22% da população, muito menos do que os 50% necessários para o resultado ter validade jurídica.
A estas posições do papa, no entanto, não se deve dar um peso maior do que convém. A Igreja Católica preza a sã laicidade, que inclui a legítima autonomia do Estado. Este não deve legislar para a hierarquia católica, mas para os seus cidadãos em vista do bem comum. Entre eles há crentes e não crentes, além de crentes que não concordam em tudo com os seus ministros religiosos. E o bem comum deve contemplar os LGBTs e suas famílias, sem transformá-los em cidadãos de segunda categoria. De um modo geral, estas intervenções da hierarquia pouco interferem na legislação civil de muitos países. Há um processo consistente de mudança em favor do direito homoafetivo, que faz parte da modernidade contemporânea e não tem volta. Os cristãos lúcidos hão de reconhecer os valores desta nova realidade, que dá a mais pessoas a oportunidade de amarem e serem amadas.
As ações e motivações religiosas inclusivas ganham força na Igreja Católica, apesar de fortes resistências. Não se deve negligenciar este potencial religioso benéfico, que se soma a outras igrejas e pode fazer muita diferença na vida de milhões e milhões de pessoas. Ao criar novos cardeais, o papa Francisco alertou contra a tentação de estar com Jesus longe dos marginalizados, isolando-se numa casta que nada tem de autenticamente eclesial. Pois é no evangelho dos marginalizados que está em jogo a nossa credibilidade.
Por isso, nunca nos esqueçamos de Diego Neria e de tantos que são como ele.
Diversidade Católica - 28-02-2015.
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