quinta-feira, 5 de março de 2015

Tereza de Jesus: uma mulher apaixonada

No Dia da Mulher, relembremos a biografia de uma das mais importantes personalidades cristãs.

Por Maria Clara Lucchetti Bingemer*
 
No Dia Internacional da Mulher, é costume escrever em geral reflexões mais teóricas sobre a libertação da mulher, sua força e sua emergência e a libertação que tem conhecido nos últimos anos.  Este ano e desta vez, queremos homenagear todas as mulheres narrando o perfil de uma mulher específica: Teresa de Jesus, também e mais conhecida como Teresa de Ávila, carmelita, mística e doutora da Igreja.

A Igreja Católica celebra este ano os 500 anos de uma de suas grandes místicas: Teresa de Ahumada, mais conhecida como Teresa de Ávila, ou mais ainda como Teresa de Jesus.  Nascida em 1515, em Ávila, Castela, e falecida em 1582, é justamente considerada uma das mais importantes personalidades religiosas do período contra reformista. Canonizada por Gregório XV (1622), tornou-se a primeira mulher a receber o título de doutora da Igreja, por decreto de Paulo VI (1970). Essa carmelita foi, ao lado de São João da Cruz, a reformadora da Ordem do Carmo, fundando a Ordem das Carmelitas Descalças, mais próxima das raízes do ideal místico contemplativo da Ordem. Esse empreendimento gerou muitos inimigos a Teresa de Ávila e um meio de defender seus ideais foi a escrita de sua autobiografia, sugerida por seus padres confessores e amigos. A escrita, no entanto, não era apenas exercício intimista ou diletante para Teresa, mas uma forma de ação evangelizadora e formativa que ela aplicava com as outras irmãs pelas quais era responsável e que até os dias de hoje encantam e alimentam a vida espiritual de muitas pessoas, leigos ou religiosos, que se apaixonam por seus escritos.  
Há em Teresa uma profunda consciência de que o corpo é essencial não apenas para a experiência mística, mas para a própria espiritualidade cristã. Em sua autobiografia, Teresa defende firmemente a valorização do corpo contra teorias platonizantes que pregavam uma espiritualidade “etérea”, diz-nos a Santa: “(...) nós não somos anjos, ao contrário, temos corpo. Querer fazer-nos anjos estando na terra [...] é desatino. Ao contrário, é preciso ter apoio, o pensamento, para a vida normal. [...] em tempo de secura, é muito bom amigo Cristo, porque o vemos Homem, e o vemos com fraquezas e tormentos, e faz companhia (p. 203-4). Essa consciência do corpo como lócus onde a experiência mística se dá aparece tanto em sua prosa, notavelmente na autobiografia Vida, como em sua lírica, que se destaca pelo pathos que a atravessa. Esses são versos que impressionam pelo erotismo místico, pois são, como a própria Teresa o confessa em um de seus poemas,”nacidos del fuego del amor de Dios que en si tenía”.
Sobre Teresa de Ávila, assim se pronunciou Júlia Kristeva, psicanalista e crítica literária contemporânea: “Na sua viagem rumo ao outro, Teresa indica um dado importante para cultura europeia. Para que o eu exista, o cogito de Descartes não é suficiente. O eu tem necessidade do outro, com o qual instaura uma ligação indispensável. O eu e o outro se identificam e se confundem um com o outro. Teresa cria essa ligação com a divindade. Para ela, a transcendência torna-se imanência. Desse modo, coloca-se no caminho do humanismo cristão que dará lugar ao humanismo moderno. Justamente porque Deus e o infinito estão nela, Teresa torna-se uma pessoa e uma linguagem infinita”.
No entanto, a maior e mais evidente característica da vida e pessoa de Teresa de Ávila é, sem dúvida, sua condição de perpétua enamorada de Deus.  Ao narrar suas experiências místicas, Teresa em nenhum momento censura a dimensão erótica de sua experiência de Deus, a quem chama de Amado, a quem dedica poesias que deixam perceber o aceso da chama que a devora de amor e paixão por esse Deus que a cria e a faz para ele. Isto autentica e concede veracidade à sua condição de mística, assim reconhecida pela Igreja e por quantos entram em contato com sua experiência espiritual e sua esplendida relação com Deus.
A experiência mística é experiência do Outro absoluto que se dá participativa e fruitivamente. Tanto assim que é definida pela teologia clássica como "cognitio Dei experimentalis" (conhecimento de Deus por experiência) ou por filósofos tomistas do porte de Jacques Maritain como "experiência fruitiva do absoluto".  Trata-se, portanto, de uma experiência.  E experiência não puramente racional ou intelectual.  Mas experiência relacional onde o gozo e a fruição estão presentes, onde se cresce no conhecimento pela experiência dessa fruição, onde conhecer, de acordo e em sintonia com o “conhecer” bíblico, é inseparável de amar.
Se voltarmos os olhos para os relatos bíblicos, percebemos já neles a profunda intuição de que o conhecimento passa pelos sentidos e pela corporeidade.  Assim é que Jacó “conhece” sua mulher Rebeca no silencio e na intimidade da tenda onde ambos concebem os filhos que terão juntos.  Assim igualmente toda a linhagem dos casais que povoam a Escritura e a Revelação fornece a matriz analógica segundo a qual a linguagem espiritual falará da experiência de Deus, o qual “conhece” sua criatura na intimidade do coração, despertando-lhe os sentidos ao mesmo tempo em que lhe revela seus segredos mais profundos e sua vontade transformadora da história e da realidade.
No evento místico, que se desenrola entre o ser humano e o ser divino, estão implicados não apenas o sujeito que conhece, ou seja, o eu, mas o outro, o tu. Portanto, aquele ou aquela que, por sua alteridade e diferença, movem o eu em direção a uma jornada de conhecimento sem caminhos previamente traçados e sem seguranças outras do que a aventura da descoberta progressiva daquilo que algo ou alguém que não sou eu pode trazer. Trata-se de alguém sobre quem não tenho poder, que a mim se dirige, me fala e a quem respondo.  Um "outro “sujeito", cuja diferença a mim se impõe como uma epifania, como revelação. No caso da mística, essa relacional idade com a diferença do outro cobra dimensões diferenciadas na medida em que coloca no processo e movimento da relação um parceiro de dimensões absolutas, com o qual o ser humano não pode sequer cogitar em fazer número, manter relações simétricas ou relacionar-se em termos de necessidade, senão apenas de desejo. Trata-se de um Outro cujo perfil misterioso e fascinante desenha-se sobretudo nas situações- limite da existência e transforma radicalmente a vida daquele ou daquela que se vê implicado/a nesta experiência.
Assim aconteceu com Teresa de Ahumada, mulher profundamente feminina, que contemplou a Beleza Infinita, o Sumo Bem, a glória infinita da divindade ficando para sempre ferida pelo encanto sob o qual este Outro a tem seduzido e fascinado.  Ela passará sua vida em busca de um novo pressentir desta visão que um dia a deslumbrou tão fortemente que já não pode esquecer-se do que lhe foi dado ver e perceber e prefere morrer antes que perder a presença amada que a fascina com sua beleza e seu fulgor.  Daí os versos tão radicais que escreve a mesma Teresa: “Muero porque no muero”.  O desejo de morrer é devido a que na morte espera encontrar o Amado de sua vida sem o véu da carne que impossibilita um encontro total e pleno.
No caso da mística cristã, a relação amorosa tem o componente antropológico no centro de sua identidade, uma vez que o Deus experimentado e amado se fez carne e mostrou um rosto humano. Por isso os místicos cristãos de todas as épocas encontram palavras tiradas do vocabulário da sexualidade e do amor humanos para descrever seus estados de alma e narrar suas experiências. O gozo e a dor corpóreos e afetivos serão os canais – ainda que pálidos e insuficientes – pelos quais eles e elas buscarão comunicar a experiência inefável da qual são protagonistas por graça e não por esforço próprio.
Com Teresa não é diferente.  E assim acontece com a narrativa de sua experiência de êxtase, quando não tem reparo em escrever: “Via um anjo ao pé de mim, para o lado esquerdo, em forma corporal, o que não costumo ver senão por maravilha...não era grande mas pequeno, formoso em extremo, o rosto tão incendido, que parecia dos anjos mais sublimes que parecem todos se abrasam...Via-lhe nas mãos um dardo de oiro comprido e, no fim da ponta de ferro, me parecia que tinha um pouco de fogo. Parecia-me meter-me este pelo coração algumas vezes e que me chegava às entranhas. Ao tirá-lo, dir-se-ia que as levava consigo, e me deixava toda abrasada em grande amor de Deus. Era tão intensa a dor, que me fazia dar aqueles queixumes e tão excessiva a suavidade que me causava esta grandíssima dor, que não se pode desejar que se tire, nem a alma se contenta com menos de que com Deus. Não é dor corporal mas espiritual, embora o corpo não deixa de ter a sua parte, e até muita. É um requebro tão suave que têm entre si a alma e Deus, que suplico à Sua bondade o dê a gostar a quem pensar que minto...Os dias que isto durava, andava como alheada; não queria ver nem falar, senão abraçar-me com a minha pena, que era para mim maior glória que quantas há em tudo o criado. Isto me acontecia algumas vezes, quando quis o Senhor que me viessem estes arroubamentos tão grandes que, até mesmo estando entre muitas pessoas, não lhes podia resistir, e assim, com muita pena minha, se começaram a divulgar. Desde que os tenho, não sinto tanto esta pena, senão o que disse em outra parte - não me recordo em que capítulo -, o qual é muito diferente em muitas coisas e de maior preço; pois, em começando esta pena de que agora falo, parece que o Senhor arrebata a alma e a põe em êxtase, e assim não há lugar para ter pena nem padecer, porque vem logo o gozar".
Tudo que releva da experiência mística não pode desviar ou abstrair ou mesmo distrair daquilo que constitui a humanidade do ser humano.  É paradoxalmente na similitude mais profunda com o humano que o Deus da revelação cristã vai mostrar sua diferença e sua alteridade absolutamente transcendentes. E assim é com Teresa, a de Jesus, que sente em sua corporeidade feminina o fogo e a força do amor doloroso e fruitivo do Deus de seu amor.
Contemplar a experiência de Teresa é deparar-se com um dado antropológico original, já que uma experiência como a sua inaugura em seu processo de conhecimento amoroso na relação com o Deus Transcendente algo da Nova Criação. Sua experiência mística a recria por completo, fazendo-a experimentar-se como nova e recém-saída das mãos do Criador. A experiência se dá no lugar da estrutura antropológica onde tem lugar a passagem do ser em si para o ser para o outro que é a verdade sobre o ser. Teresa vive, portanto, constitutiva e inseparavelmente, uma experiência de amor, que carrega em si o processo de uma nova criação, com toda a sua paradoxal dimensão de parto e saída à luz, de dor e alegria, de beleza e sofrimento, de ocultamento e revelação.  Aquele que é experimentado é o Criador de todas as coisas e fazendo-se experimentar em níveis profundos de união por sua criatura, revelando-lhe os mistérios mais íntimos de sua vida e de seu ser, está realizando nela, por assim dizer, uma nova criação.  Eis porque seu processo místico é inseparável e paradoxalmente gozoso e doloroso, sem deixar por isso de ser amoroso.
O gozo amoroso experimentado tem como lugar de acontecimento a carne, com sua vulnerabilidade, mortalidade e finitude.  E a experiência de um amor maior que tudo que existe provoca sedução e fascínio, provoca ao mesmo tempo dor pela ausência, pela falta, pela incompletude, pelo sentimento de não poder consumar a união e dever constantemente apalpar a pobreza de seus limites e a escuridão onde a luz refulge soberana mas pode esconder-se, esquiva, a qualquer momento deixando a alma sozinha e entregue à intempérie da aridez e da desolação desabitada.
Assim como em Jesus Cristo, a Nova Criação se fez através do trânsito pascal pelo sofrimento e a dor, em toda experiência dos grandes místicos cristãos ocidentais estará presente esta marca paradoxal da Beleza crucificada, da fruição pervadida pela carência e pela ausência, pelo amor mais forte que a morte, mas que passa pela morte, ápice da revelação do Verbo Encarnado. A experiência da contemplação e da fruição dessa beleza será uma mistura de gozo e dor, de gozo inseparável da dor, de plenitude amorosa no mais agudo da dor.   Nestes mistérios, Teresa de Jesus é mestra e doutora.  Não admira que sua pessoa perpetuamente enamorada continue fascinando hoje como ontem a homens e mulheres sedentos de um amor que os recrie e dê sentido a suas vidas.
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*Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, "¿Un rostro para Dios?", de 2008, e "A globalização e os jesuítas", de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia.

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