segunda-feira, 20 de julho de 2015

Uma ferramenta secular de controle dos pobres

Presos preferem ser espancados do que levados à punição social, que pode restringir seus direitos.

Por IHU OnLine
“Há um estímulo à tortura tão grande que seus protagonistas costumam negá-la”, diz o sociólogo Ignacio Cano. No Brasil, onde há uma transmissão histórica de controle sobre as classes menos favorecidas, a naturalização da tortura é evidente. “Alguns coletivos, inclusive vítimas, não falam de tortura, utilizam outros termos como ‘coça’, ‘tunda’ ou surra para classificar o ato”, assegura o pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). E dispara: “Alguns presos preferem ser espancados do que levados à punição social, que poderia restringir seus direitos”.

Maior desafio dos direitos humanos, “a tortura é uma ferramenta histórica secular de controle”, e recebe respaldo da sociedade. O pânico que existe nos grandes centros e o medo das pessoas faz com que elas sustentem soluções que aparentemente trazem tranqüilidade. Nesse sentido, explica, “muitos apóiam a truculência policial e a tortura desde que exercida contra outros coletivos, na esperança de que isso vá lhes proteger contra a violência e o medo que sentem”. Além de ser um problema cultural, a violência tem, segundo o pesquisador, “muito mais a ver com condições sociais, culturais e estruturais do que com condições morais e individuais”.

Confira a entrevista:

O senhor percebe algum avanço após a declaração dos Direitos Humanos no mundo, há 60 anos? Como avalia a atuação dos direitos humanos no país? 

O avanço mais importante desde a declaração dos Direitos Humanos foi a extinção do regime racista na África do Sul. É claro que o racismo continua existindo, mas pelo menos ele não existe mais um regime formalmente racista no mundo. Durante esses 60 anos, também foram criadas a convenção contra a tortura e os direitos aos homens sexuais. Eles não estão contidos explicitamente na declaração, mas a idéia de que não se deve discriminar as pessoas por motivos diversos está encarnada nesse tema.

No cotidiano esses direitos são respeitados? 

A legislação tem algum reflexo na prática. Na África do Sul, os negros continuam numa posição econômica desvantajosa, mas têm acesso a todas as instituições, ou seja, não são mais discriminados na sua própria terra. Em outras áreas, esses avanços são mais questionáveis. No que se refere à tortura, por exemplo, depois dos ataques nos Estados Unidos, em 2001, houve um retrocesso no mundo inteiro em relação ao respeito dos direitos básicos das pessoas. A partir desse momento, assistimos a um avanço da tortura institucionalizada e restrições gerais em todos os países por causa do terrorismo. Nessa área, estamos numa fase de refluxo e esperamos, com o fim da presidência de Bush, entrar numa nova fase e pôr fim a esses retrocessos.

Por que o senhor considera a tortura um problema cultural? 

O que há no Brasil é uma naturalização da tortura, tanto é que alguns coletivos, inclusive vítimas, não falam de tortura. Acabam utilizando outros termos, como “coça”, “tunda” ou surra para classificar o ato. Há um estímulo à tortura tão grande que seus protagonistas costumam negá-la. No país, há uma transmissão histórica de controle social das “minorias”, ou talvez das “maiorias” perante a violência. Quando uma política foi criada no século XIX, entre suas funções, estava a de aceitar escravos. Então, nós temos uma longa tradição de controle através da violência, a qual continua até hoje. Nesse sentido, a violência é um problema cultural, porque muitas pessoas naturalizam essa tortura. Alguns presos preferem ser espancados do que levados à punição social, que poderia restringir seus direitos. Tudo isso mostra que, para muitos coletivos sociais, a violência não é legítima e a tortura também não.

Por que a própria sociedade banaliza os direitos humanos? Essa reação é apenas um reflexo do nosso histórico social? 

Em certa medida é. Um dos problemas é que a violência e a tortura acontecem com determinados coletivos e não com toda a sociedade. Quando um jornalista ou alguém da classe média é torturado ou sofre um ato de execução sumária, há uma reação social bastante grande. Mas como a violência é exercida, sobretudo, com as camadas mais humildes, que não têm uma articulação para se expressar política e socialmente, então o resto da sociedade não reage, porque o histórico foi sempre assim. Brinco com meus colegas que o grupo Tortura Nunca Mais, que tem um papel muito importante no nosso país, deveria também se chamar Tortura Basta Já, porque “tortura nunca mais” sugere que não havia tortura, que a ditadura militar a trouxe e que agora se trata de evitar uma reflexão do que aconteceu naquele regime. Mas nossa realidade é muito diferente: a tortura é uma ferramenta histórica secular de controle dessas populações, e precisamos quebrar essa tendência histórica.

O pânico que existe nas grandes cidades e o medo que as pessoas sentem fazem com que elas apóiem soluções de qualquer tipo, as quais aparentemente podem lhes trazer um pouco de tranqüilidade. Nesse sentido, muitos apóiam a truculência policial e a tortura desde que exercida contra outros coletivos, na esperança de que isso vá lhes proteger contra a violência e o medo que sentem.

Então, a violência no Brasil ainda é considerada uma ação de controle social? 

A violência exercida pelo Estado é uma forma de controle social. O Estado tem o monopólio da violência legítima e faz uso dessa violência em alguns casos extremos, onde não há outra forma de preservar os direitos das pessoas. O problema no Brasil é que o grau de violência exercido pelo Estado é muito alto, e em muitos casos esse número acaba alimentando a violência geral, alimentando e incentivando a violência.

É possível comparar a violência praticada hoje com a dos anos de chumbo, por exemplo? Como pensar a prevenção desse crime? 

A violência exercida pelo Estado naquela época se caracterizava por alvejar também setores da classe média e alta, em função da sua ideologia. Isso acabou. Hoje em dia, o Estado, com raras exceções, procura as pessoas e exerce ações violentas. A criminalização e a violência aumentaram muito não por conta do regime político, mas em função de variáveis socioeconômicas: da forte migração, da construção de áreas metropolitanas com poucas condições de habitação. Tudo isso gerou periferias urbanas que são cabo da violência.

Quais são os maiores problemas que o Brasil ainda enfrenta no que se refere a violência?

A tortura e a execução sumária ainda são problemas extremamente graves no país, como foi demonstrado nos relatórios das Nações Unidas. Essas seriam as duas prioridades na área dos direitos humanos, as quais não recebem suficiente atenção. No entanto, temos recentemente alguns avanços no Brasil: foi assinado o protocolo facultativo da convenção contra a tortura e agora a sociedade está refletindo sobre a possibilidade de implementar medidas de prevenção, que são muito necessárias. Quanto à execução sumária, o governo e a Finesp estão promovendo a introdução de armamento não letal.

No que tange à violência em termos gerais, ela é muito elevada no país, sendo uma das mais altas do mundo. Na América Latina, os índices de violência estão abaixo apenas da Venezuela e de alguns países da América Central. Houve uma pequena diminuição da violência nos últimos anos, o que indica um primeiro sintoma positivo depois de muitos anos de brutalidade. A diminuição da desigualdade e da pobreza também são elementos que ajudam a configurar um cenário em que a violência seja menos provável. Então, há uma expectativa de que essa tendência negativa, que começa nos anos 80 e se estende até o momento, seja revertida a partir de agora.

O que caracteriza a maldade na sociedade? O ser humano tem prazer de fazer mal ao outro?

Todo ser humano tem a potencialidade de fazer coisas lamentáveis. As experiências da Segunda Guerra Mundial, do extermínio dos campos de concentração criados pelo nazismo, mostram que todo ser humano normal é capaz de desenvolver condutas absolutamente perversas. Então, se a taxa de homicídio no Brasil está perto de 25 a 30% e na Europa está abaixo de 1%, não é porque nós somos mais perversos ou malvados que os europeus. Este resultado tem muito mais a ver com condições sociais, culturais e estruturais do que com condições morais e individuais. É claro que, considerando o cenário propício, pessoas com menor controle moral serão mais violentas que outras. Mas, para ajudar a entender e a explicar as taxas de violência numa sociedade, a dimensão moral nos ajuda pouco. As grandes explosões de violência não são explosões de maldade. Desse modo, a redução da violência não tem nada a ver com beatificação.

É possível restabelecer a moral abalada pela violência? 

Uma das características mais perversas da violência é a sua capacidade de se auto-reproduzir. Nesse sentido, a violência gera condições que vão permitir que ela volte a acontecer. Assim, pessoas que sofreram violência podem ser também protagonistas de atos violentos. Mas esse ciclo não é inalterável. De fato, muitas pessoas conseguem escapar desse circulo e trabalhar na linha de frente no combate à violência. Então, não só é possível, mas necessário que as pessoas que sofreram agressões saiam desse papel de vítima para se converterem em agentes contra a violência.
* Graduado e doutor em Sociologia, pela Universidad Complutense de Madrid, Ignacio Cano é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Da sua vasta produção bibliográfica, destacamos Letalidade da ação policial no Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Iser, 1997), Letalidade de ação policial no Rio de Janeiro. A atuação da Justiça Militar (Rio de Janeiro: ISER, 1999), La policia y su evaluación: propuestas para la construcción de indicadores de evaluación del trabajo policial (Santiago do Chile, 2002) e Quem vigia os vigias? Um estudo sobre controle externo da polícia no Brasil (Rio de Janeiro: Record, 2003).

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