terça-feira, 20 de outubro de 2015

Da mudança dos tempos ao convite à reflexão

O que não pode e não deve ocorrer é qualquer comportamento que caracterize fraude.

Por Renata Teixeira Silva Duarte*
Quando, a partir da quinta-feira (01), passou a ser obrigatório o recolhimento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para os empregados domésticos, renasceu a discussão acerca do impacto financeiro da Lei Complementar nº 150 sobre o orçamento familiar. A LC 150, sancionada em 1º de junho deste ano, regulamentou a Emenda Constitucional 72, que foi o reflexo da aprovação daquela que ficou conhecida como a “PEC das Domésticas”.
Felizmente, houve uma ampliação dos direitos dos domésticos, a exemplo da duração normal da jornada não excedente a 08 horas diárias e 44 horas semanais; exigência de controle de jornada e pagamento de horas extras; recebimento de adicional noturno e seguro contra acidentes de trabalho, bem como a vedação à contratação de menores de 18 anos para desempenho de trabalho doméstico.
O empregador deverá pagar ao empregado, pelo menos, 8% de FGTS, 8% de contribuição patronal previdenciária para a seguridade social (INSS), 0,8% de contribuição social para financiamento do seguro contra acidentes do trabalho e 3,2% destinados ao fundo que garantirá o pagamento de indenização compensatória da perda do emprego sem justa causa ou por culpa do empregador. Quanto ao percentual a ser pago como contribuição previdenciária a cargo do empregado, fica a critério do empregador descontar ou não o valor correspondente do trabalhador. Com a regulamentação do Simples Doméstico, é possível o recolhimento de todos os tributos, contribuições e encargos pelo empregador mediante documento único de arrecadação.
Além dos citados, há outros direitos garantidos à classe dos domésticos, com o intuito de corrigir a disparidade que sempre houve entre esses trabalhadores e os demais, sejam urbanos ou rurais. Mais importante, contudo, do que transcrever, ipsis litteris, tais direitos, é analisarmos seu impacto, não apenas sobre a vida do empregador, mas também sobre a do hipossuficiente. Percebe-se, por parte do legislador, maior comprometimento com essa classe de trabalhadores cujo labor tem sido subvalorizado em relação às demais profissões, o que teve sua origem no período da escravidão negra. Cuida-se, nesse aspecto, não da concessão de “regalias”, mas da oferta de condições mínimas necessárias ao exercício da profissão com a dignidade e o respeito merecidos.
Hoje, as mulheres constituem a maior parte da população no Brasil, assumindo uma fatia também maior no mercado de trabalho, segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio divulgada pelo IBGE. Passamos de um formato de família – em que o homem era o provedor e a mulher cuidava dos assuntos e tarefas domésticas, além de acompanhar, mais de perto, a evolução e educação dos filhos – a outro, em que homens e mulheres assumiram jornadas duplas e triplas, entre cuidados com a casa, filhos, formação e atividade profissional. Atualmente, ter alguém a quem delegar tarefas no âmbito doméstico passou a ocupar a lista de prioridades de muitas famílias, sem que isso seja artigo de luxo, mas algo necessário para que a roda continue a girar.
A crise econômica existe e, realmente, nem todos os empregadores conseguirão arcar com as despesas decorrentes da remuneração desses empregados. É mesmo possível que, após a inovação legislativa, muitos percam seu emprego, devido ao alto custo para o empregador atual – o que não impede que sejam, futuramente, contratados por outros.
Embora isso seja uma exceção à regra – consistente na informalidade e desvalorização do trabalhador doméstico – há empregadores que, justamente por pensarem na melhor situação dos empregados, realizavam o pagamento num patamar acima do salário mínimo. Ao considerar esse valor, acrescido do que está previsto na lei sob análise, teremos um valor superior ao que seria pago se, porventura, esse empregador fosse contratar outro empregado,  remunerando-o sob o patamar mínimo. Isso quando for mesmo imprescindível a contratação, pois existe a possibilidade de reorganização de tarefas e redistribuição de prioridades – por mais penoso que isso possa parecer.
O que não pode e não deve ocorrer é algum tipo de comportamento, por parte do empregador, que caracterize fraude – por exemplo: declaração de pagamento inferior ao efetivamente realizado, como forma de burlar o pagamento dos tributos, contribuições e demais encargos devidos –, o que geraria a propositura de demandas em série. Outro risco que se corre é o da ausência de formalidade na contratação, o que também oneraria, de antemão, os empregados e, num futuro não muito distante, poderia ser objeto de demandas trabalhistas, causando grandes transtornos aos empregadores. Não se podem vilipendiar direitos, sob qualquer pretexto que seja. Dessa forma, toda vez que pairar alguma dúvida sobre a necessidade de tal valorização, há que se desconstruir qualquer tese equivocada que tenha se arraigado.
Após ser abolida a Escravidão no Brasil, em 1988, o trabalho doméstico representou, para as famílias negras, uma possibilidade de sobrevivência. Todavia, mesmo após a abolição, as mulheres negras – inclusive crianças – permaneceram em condição análoga à de escravas, sendo seu trabalho, muitas vezes, feito em troca de moradia e alimentação. Esse histórico de imprecisa abolição mostra-nos como nasceu a desvalorização da profissão, marcada pelo cometimento de abusos e pela ausência de remuneração digna. Deixemos vir à tona o reconhecimento por uma profissão sem a qual tantas outras não poderiam ser exercidas. E já que essas profissões são juridicamente protegidas, nada mais justo do que permitir que condições mais dignas de trabalho alcancem os trabalhadores domésticos.

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