Doenças e mal-estares? Todos, cuidadosamente registrados, com detalhes preciosos.
Sempre foi um homem apaixonado por anotações. Desde rapaz, escrevia tudo em seus diários, uma dúzia de cadernos de capa dura, numerados na lombada. Por exemplo: o consumo mensal de gasolina e trocas de óleo do Volks 71, seu primeiro carro – com a marca dos produtos e endereço do Posto. Na sequência, compra e venda de todos os veículos que vieram depois do fusca, com nome, endereço, tipo físico, CPF, identidade e dados familiares dos novos donos.
Doenças e mal-estares? Todos, cuidadosamente registrados, com detalhes preciosos. Estava lá: “manhã de 16 de março. Leve enxaqueca por volta das 9:00 horas, passando a moderada às 10:16 e forte às 11:56, precisamente. Imagens que pude observar: rabiscos luminosos da esquerda para a direita, estrelas e demais reflexos de formato indefinido. Compressão insistente na área anterior do crânio. Tomei duas aspirinas com meio copo d’água (mineral sem gás) às 12:22. Sintomas permaneceram inalterados até às 13:15.” etc.
As namoradas não foram esquecidas. Uma a uma, estavam eternizadas nas páginas dos diários - com descrição de aspectos genéticos, preferências cinematográficas e musicais, cor de cabelo, cicatrizes, árvore genealógica, círculo de amizades e até detalhes sobre estímulos da libido. E dezenas de páginas sobre a Mariângela, com quem se casaria três anos, quatro meses, vinte e nove dias e dezoito horas após o primeiro encontro. “Conheci a Mariângela na fila do supermercado às 16:47 minutos do dia 29 de maio do ano de 1970. Entre suas compras, pude divisar: dois frascos de detergente ODD, um pacote de sabão em pó, dois biscoitos cream-crackers, um balde azul (com alça plástica de cor preta) e uma vassoura. Pagou tudo no caixa número 3, com um cheque do Bradesco.” E na linha seguinte: “Como tática de primeira abordagem, ofereci-me para carregar os embrulhos da Mariângela até seu carro, um Chevette branco gelo, ano 1969, placa AB-9746. Ela escreveu o número de seu telefone com uma caneta Bic azul num lenço de papel marca Kleenex verde-claro”.
Tinha respeito pela posteridade e um senso de humor refinado. Quando imaginou que parentes e amigos um dia teriam acesso aos seus diários, recheou-os com armadilhas e brincadeiras. “Adquiri nesta semana um bilhete da Mega Sena. Acertei as seis dezenas, embolsando integralmente a quantia de R$ 6.897.041,16. Comprarei hoje uma Mercedes-Benz conversível para Dolores, minha amante argentina, a qual já mantenho em regime de concubinato num apartamento em Copacabana. Data de hoje: 1º de abril de 2005.” Escrevia, relia e dava risadas abafadas no quarto.
Teve filhos, netos, aposentadorias. “Sábado, 11 de outubro. Mariângela está assistindo ao trigésimo-quarto capítulo da novela. Daniel, meu segundo neto, chutou a bola em direção ao quintal do vizinho e quebrou (sem querer) uma vidraça medindo 1,00 X 0,80 m. A mãe de Daniel (a saber, minha nora) deu-lhe três palmadas na região glútea, bem como proibiu-o de sair com os amigos nos próximos sábados, que cairão nos dias 18 e 25 do corrente mês.”
Os filhos, implicantes e um pouco preocupados, dizem que a coisa já virou mania, loucura mesmo - opinião que conta com o apoio integral de Mariângela. No último almoço de domingo, para surpresa geral, ele anunciou que comprou um notebook de última geração. E que, de agora em diante, estará muito ocupado transcrevendo suas anotações para o formato digital – e não pretende ser incomodado. Segundo explicou à família, vai necessitar de bastante tempo para fazer uma nova lista dos momentos mais marcantes de sua vida. Uma missão penosa e fascinante o aguarda: deve separar tudo por data, catalogar por assunto, pessoas envolvidas, imprevistos, fotos, ordem cronológica, parentescos. Enfim, um trabalhão danado.
Mariângela já avisou aos filhos que vai passar uns tempos com a irmã que mora em Salvador.
*Fernando Fabbrini é roteirista, cronista e escritor, com dois livros publicados. Participa de coletâneas literárias no Brasil e na Itália e publica suas crônicas também às quintas-feiras no jornal O TEMPO.
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