Sempre sonhei em ter tudo catalogado e ainda não desisti desta quimera.
Por Max Velati*
Para manter a minha saúde e o que resta da minha crença no futuro, estabeleci limites diários de informação que me permito receber antes que causem danos às minhas reservas de fé e esperança. Quando os noticiários transbordam estas marcas, oferecendo em alta resolução exemplos fartos de selvageria, ganância, desonestidade e crueldade, minha resposta consiste em me desligar da realidade presente e buscar algum conforto no passado. Nestes momentos, percorro agradecido a minha biblioteca, o meu Google analógico, o meu tônico revigorante para a alma, caçando vestígios de outros tempos, estudando outros caminhos e aprendendo sobre antigas virtudes.
Minha biblioteca tem hoje algo entre 1500 e 2000 obras. Cheguei a ter quase 5000, mas depois de sucessivas mudanças de endereço, falências, separações e divórcios (sim, plural!), perdi pelo caminho milhares de amigos preciosos. Sempre sonhei em ter tudo catalogado e ainda não desisti desta quimera, mas com tantos compromissos diários com a imprensa e com a literatura, organizar o acervo fica sempre em terceiro ou quarto lugar na lista de tarefas.
Comecei a comprar livros aos quinze anos e penso que em quatro décadas aprendi alguma coisa sobre livros e livreiros. E nesta jornada, os livreiros (esta nobre estirpe em extinção!) também aprenderam a me conhecer e não há na minha cidade uma livraria onde eu não seja conhecido pelo nome e receba, logo ao entrar, sugestões e notícias de lançamentos. Foi esse o caso na semana passada, quando soube que um velho sonho havia se realizado. Meu amigo livreiro colocou sobre a mesa, ao lado do meu café, os cinco volumes da “Enciclopédia ou Dicionário Razoado das Ciências, das Artes e Ofícios”, a ambiciosa produção de Diderot e D’Alembert que ganhou mês passado pela Editora Unesp a sua versão em português. Mesmo que esta edição ofereça ao leitor brasileiro uma fração apenas da obra original, tal iniciativa enche de alegria um velho bibliófilo e preenche um vazio doloroso nas minhas prateleiras.
Diderot e D’Alembert trabalharam na “Enciclopédia” de 1751 a 1772, escrevendo pessoalmente ou editando cerca de 72 mil verbetes. Contando apenas com tinta e papel e os serviços postais, não é possível sequer imaginar o que esta obra - que contou com 140 colaboradores geniais e geniosos - exigiu de tempo e esforço. Basta dizer que fizeram parte da equipe nomes como Voltaire e Rousseau.
A edição brasileira publica em cinco volumes apenas 298 verbetes, mas escolhidos pelos professores da USP Maria das Graças de Souza e Pedro Paulo Pimenta, como os temas mais importantes e defendidos com melhor argumentação. E o termo “defendido” se aplica, já que a obra original recebeu à época críticas e pressões de todos os tipos, especialmente da Igreja. Um dos méritos da “Enciclopédia” foi desvincular o conhecimento da tutela da Teologia e por isso foi duramente criticada. Mesmo com tantas pressões, a obra obteve reconhecimento e pelos seus méritos recebeu seis edições entre 1751 e 1782, um grande sucesso comercial para uma tarefa editorial sem precedentes.
Ao folhear os cinco volumes em capa dura, fiquei pensando na sorte que os jovens de hoje têm em poder contar com estas fontes preciosas bem ao alcance da mão. É claro que vou ouvir dos amigos da minha filha sobre a Wikipédia, mas tenho esperanças de que entendam que na megaenciclopédia digital vão encontrar apenas o verniz de cada assunto, a camada exterior, redigida por qualquer um e apresentada ao leitor depois de edições e filtros que vão eliminar todas as arestas e polêmicas. Na “Enciclopédia” os temas são polêmicos e os autores se viram obrigados a usar muitas vezes de fino estilo literário e ironia, tornando forma e conteúdo igualmente saborosos.
Mas talvez a nova geração não tenha nenhum interesse ou até mesmo preparo para apreciar o que os autores definiram no século XVIII como “um quadro dos esforços do espírito humano de todos os tipos e em todos os séculos”. Tenho esta sensação porque lendo ao acaso um bilhete de um colega de sala da minha filha, vi que ele escreveu duas vezes “hoje” com circunflexo. Hôje. Duas vezes. Minha filha está no terceiro ano do Ensino Médio e estuda num dos colégios mais caros da capital.
Hora de passear novamente pela minha biblioteca.
*Max Velati trabalhou muitos anos em Publicidade, Jornalismo e publicou sob pseudônimos uma dezena de livros sobre Filosofia e História para o público juvenil. Atualmente, além da literatura, é professor de esgrima e chargista da Folha de S. Paulo. Publica no Dom Total toda sexta feira.
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