sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O ocaso de um paradigma médico

Mesmo há sete anos aposentado, não deixei de acompanhar a profissão que fiz por vocação
Por Evaldo D´Assumpção*
Neste mês em que comemoramos o Dia dos Médicos, recebo um comunicado da Associação Médica de MG e da Academia Mineira de Medicina, dando conta de que o Fórum de Saúde Mental do Médico, patrocinado por estas duas instituições e que seria realizada neste mês de outubro, foi cancelado falta de quórum.
Fiquei consternado e extremamente decepcionado pelo fato de que, quando éramos talvez menos da metade dos médicos hoje em prática na capital mineira, quase todas as programações científico-culturais que promovíamos nestas duas instituições, das quais fiz parte de suas diretorias, quase sempre tinham os auditórios repletos de profissionais interessados em ampliar seus conhecimentos e, sobretudo a sua cultura. Todavia, com o passar dos anos as reuniões que mais atraiam esculápios foram se tornando as destinadas a discutir questões financeiras, salariais e empregatícias. As culturais em primeiro lugar, e depois as científicas, foram paulatinamente se esvaziando. Quanto mais médicos eram “despejados” pelas Faculdades de Medicina, que também se multiplicaram, irracional e irresponsavelmente, menos eles compareciam às reuniões científicas, e menos ainda às culturais. Hoje não é incomum o cancelamento destes eventos. Retrato de uma nova época que desponta no horizonte hipocrático.
No que tange à Academia Mineira de Medicina, pasmem os leitores: há seis anos fui promovido a Emérito, deixando vaga a cadeira que ocupava. Tentei preenchê-la com algum cirurgião plástico, para dar continuidade à história que iniciei. Foi em vão. Dentre os mais de 300 profissionais militando em BH, não encontrei um só que se sentisse entusiasmado em se tornar membro deste sodalício – que para mim foi a culminância da profissão médica.  Os pouquíssimos que demonstraram algum interesse, não tinham currículo compatível para pleitear sua entrada na Academia. Especialmente no que diz respeito à produção científica. Hoje, os “trabalhos científicos” desenvolvidos, em sua esmagadora maioria, são formatados para apresentação em congressos, onde o rigor da seleção não alcança a severidade da Academia, tampouco a rigorosa “peneira” das comissões editoriais das revistas médicas respeitadas.
Exceção se faz a alguns médicos ligados às Universidades, onde as exigências neste campo são maiores. Todavia, nem todos as cumprem, pois pesquisa científica e publicação de trabalhos é tarefa hercúlea, quase incompatível com os interesses financeiros que hoje mobilizam, prioritariamente, grande parte dos novos esculápios.
Diante deste quadro – salvo melhor juízo – não é de se assustar os cancelamentos de cursos e reuniões científicas e culturais, bem como a qualidade medíocre da prática clínica, e a precária relação médico-paciente, que hoje é quase uma constante em nossa pátria amada, idolatrada.
Não ignoro nem menosprezo a péssima gestão da saúde pelos governos, em todos os níveis. Não ignoro a má remuneração dos planos de saúde. Mas nada disso justifica o desinteresse pela qualidade da profissão médica, especialmente para os que foram genuinamente vocacionados para ela. Os grandes artistas, quase sempre viveram em condições precárias, mas nunca menosprezaram nem se descuidaram da qualidade de suas obras. Quem realmente ama o que faz, sacrifica-se sem limites pela qualidade daquilo que ama. Não se prostitui, fazendo e vendendo porcarias, e justificando-se pela má remuneração que recebe.
Mesmo há sete anos aposentado, não deixei de acompanhar a profissão que fiz por vocação, e exerci por, e com paixão. Mesmo que isso me traga, a cada dia mais, uma profunda tristeza e a devastadora constatação de que a minha geração já é carta fora do baralho. Ainda que alguns teimem em fazer de conta que são jovens e capazes de sustentar a medicina nos padrões de outrora. Admiro a persistência deles, mas confesso que já não consigo agir como alguns idosos dos grupos de 3ª idade, vestindo-se e dançando como se jovens fossem, ainda que o reumatismo transformem seus movimentos em dança de polichinelos desengonçados. Juventude mantem-se na mente, cultivando aquilo que a enriquece. O corpo é máquina com durabilidade limitada. Isto não me amargura nem me deixa frustrado, pois sou apenas realista. E por isso, feliz com o que hoje sou, e hoje faço.
*Evaldo D'Assumpção é médico e escritor.

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