domingo, 4 de outubro de 2015

Os silêncios da ditadura militar

Uma parte da história que não coincide com o que os militares querem contar.
Por Heloisa Maria Murgel Starling*Entre os meses de novembro de 2012 e julho de 2013, uma pequena equipe que combinava jornalistas e historiadores foi montada pela Comissão Nacional da Verdade com a tarefa de desenvolver pesquisas numa área delicada de investigação: a estrutura de informação e repressão política construída pela ditadura militar brasileira, entre os anos de 1964 e 1988. Provavelmente era a primeira vez que ocorria uma experiência desse tipo no Brasil. A equipe mista tinha como objetivo localizar os acervos documentais produzidos pelos serviços secretos militares: Centro de Informações da Marinha (Cenimar); Centro de Informações do Exército (CIE); Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa); Centro de Informações do Exterior (CIEx).
(O assunto é tema do livro ‘Lugar Nenhum’, do jornalista e escritor Lucas Figueiredo, que será lançado em São Paulo nesta segunda-feira, 05, e na quarta-feira, 07, em Belo Horizonte).
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Os jornalistas cultivavam há anos boas fontes na área militar e a eles coube a complicada operação de perseguir e apurar as informações capazes de revelar ao menos uma parte da história que não coincide com o que os militares querem contar – e analisá-las da maneira mais objetiva e fiel possível. Já os historiadores tinham a seu cargo outra ordem de problemas: os documentos por si só não dizem nada, ou quase nada, e fazê-los falar não é uma tarefa simples. É preciso explorar posições desconhecidas, conhecer outras fontes, alimentar novas perguntas. A história argumenta sempre.Jornalistas e historiadores partilhavam algumas convicções. Ambos sabiam que não podiam mentir nem deixar mentir. A isso que os pesquisadores procuravam, Hannah Arendt chamou de “verdade factual”: a ostentação pública de fatos que não podem ser modificados pela vontade de quem ocupa o poder, nem podem ser demovidos a não ser por força de mentiras cabais. E então, quando o resultado de uma das pesquisas trouxe à tona um conjunto razoável de documentos confidenciais, sigilosos e ultrassecretos gerados no interior da instituição militar e revelou que as Forças Armadas muito possivelmente ainda conservam seus próprios arquivos sobre o período da ditadura, jornalistas e historiadores chegaram à mesma conclusão: os fatos não coincidiam com aquilo que os militares estavam dispostos a assumir em público e existem segredos que não se quer divulgar.
Nos quase trinta anos que nos separam do fim da ditadura, jornalistas e historiadores desempenharam papel importante nos procedimentos de redemocratização do país. As reportagens sobre corrupção, mordomias e sobre os desaparecimentos, assassinatos e tortura de opositores políticos durante o governo dos militares, de um lado, e a extensa literatura historiográfica produzida sobre o período, de outro, provocaram a memória do país sobre sua história recente. E contribuíram para que essa memória sobre a ordem política gerada peladitadura e sobre os crimes cometidos pela ditadura seja encarada como uma necessidade jurídica, moral e política, necessária para a consolidação de nossa experiência democrática.
A coleção Arquivos da Repressão no Brasil guarda um pouco dessa história e conserva muito desse espírito. É uma coleção aberta a todos interessados em envolver-se com os desafios de nosso passado recente – seus debates, seus não ditos, os impasses aos quais eles nos conduzem e as evidências em que estão apoiados. Afinal, são muitos os silêncios que organizam a memória do Brasil sobre os anos da ditadura militar. Permanece o silêncio sobre o apoio da sociedade brasileira e, acima de tudo, sobre o papel dos empresários dispostos a participar na gênese da ditadura e na sustentação e financiamento de uma estrutura repressiva muito ampla que materializou sob a forma de política de Estado atos de tortura, assassinato, desaparecimento e seqüestro. Também existe silêncio sobre as práticas de violência cometidas pelo Estado contra a população e direcionadas para grupos e comunidades específicos – especialmente as violências cometidas contra camponeses e povos indígenas. Continua até hoje o silêncio em torno da construção e do funcionamento da complexa estrutura de informação e repressão que deu autonomia aos torturadores; prevaleceu, em muitos casos, sobre as linhas de comando convencionais das Forças Armadas; utilizou do extermínio como último recurso de repressão política; alimentou a corrupção; produziu uma burocracia da violência; fez da tortura uma política de Estado. E ainda sabemos muito pouco sobre a repressão aos militares que não apoiaram o golpe, sobre as condições de clandestinidade, ou sobre a vida no exílio dos opositores políticos da ditadura.
A coleção Arquivos da Repressão no Brasil tem a ambição de alcançar um público amplo – acadêmico e não acadêmico – e o desafio de apresentar um relato denso e fluido, claro e consistente. Se o tempo presente é nosso principal desafio, se temos hoje uma Democracia consolidada – mas uma República frágil e inconclusa – e se precisamos nos aparelhar para o futuro, conhecer o passado é uma das boas maneiras de se chegar a ele. Para isso servem as histórias que essa coleção pretende contar. Para nos lembrar do brasileiro que fomos e que deveríamos ou poderíamos ser; e para lembrar-nos de um país que tem um passado e precisa indubitavelmente ser melhor do que o Brasil que temos hoje
*Heloisa Maria Murgel Starling é professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de Lembranças do Brasil (1999) e Os Senhores das Gerais (1986).

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