terça-feira, 3 de novembro de 2015

A vida segue, mas tudo passa

Ao reler aquelas palavras, fiquei tenso. Que coisa mais fria, cínica, apesar de honesta.
Por Lev Chaim*
Ao abrir o romance ‘Dia de Finados, do ótimo autor holandês Cees Nooteboom, que estava em minha estante, encontrei uma folha de papel em que havia escrito algo: ‘É o azul, o branco, o verde - todas as cores da minha esperança, despida de qualquer egoísmo, mas tão pouco, revestida de qualquer generosidade extra. É a vida que segue o seu rumo, sem eira e nem beira, apenas segue!’.
Ao reler aquelas palavras, fiquei tenso. Que coisa mais fria, cínica, apesar de honesta. Por que teria escrito aquilo? Ai, lembrei-me exatamente o que havia ocorrido. Voltava da visita à minha vizinha Elizabeth, que havia sido internada numa casa de repouso, de onde ela só saia acompanhada. Ela estava totalmente desmemoriada e não reconhecia mais ninguém, nem mesmo a família. Mas o meu cão, Pitú, ela nunca esquecia.
Na última vez que entrei e Elizabeth estava na sala com as outras pacientes, ela olhou, sorriu e disse: “ Que cãozinho mais lindo, como é que ele se chama?”. Foi muito para mim. Mas, o Pitú correu para saudá-la, sem se importar com nada. Eu fiquei chocado – nem mesmo o nome dele ela se recordava agora. Na semana passada ela ainda me pediu para trazer o Pitú.
Foi ai que voltei para casa triste e escrevi frases e mais frases, para colocar os pensamentos em ordem. Algumas guardei, como esta, colocando-a dentro do livro de Cees Nooteboom. Aliás, uma obra prima do autor, onde o personagem principal, que perdeu a esposa e o filho num acidente aéreo, está em busca da razão e do porquê das separações bruscas, na vida das pessoas.
Numa das muitas conversas que tive com Elizabeth, ela me contou que não gostava de viver ali, trancada. Ai eu lhe perguntei: “E onde gostaria então de morar?”. Mais do que depressa ela respondeu: “Com você e o Pitú!”. Fiquei atônito. Ela não havia reconhecido nem o seu próprio irmão, que havia saído dali há alguns instantes. Foi ai que eu disse: “Vamos a minha  casa, comer um pedaço de bolo”. E saímos de braços dados.
Nem bem andamos um quarteirão, ela me perguntou para onde íamos e disse que não queria demorar, pois teria que jantar em casa. Eu perguntei-lhe: “Em casa, onde?”. E de pronto, ela respondeu: “Lá, de onde você me tirou.” O bolo ficou para outro dia e voltamos imediatamente. Ela estava ansiosa. Assim que entramos, ela se acalmou, sorriu para mim e perguntou: “Quem é você mesmo?”. Eu lhe dei um abraço, um beijo e disse: “ Sou seu amigo, Elizabeth, e agora vou me embora”. Sai com o propósito de nunca mais voltar.
Ai, lembrei-me do que a Elizabeth um dia me havia me contado. Ela queria morrer antes de Finados, 2 de novembro. E hoje, 3 de novembro, eu não havia ouvido nada. Será, perguntei-me estarrecido? Foi por esta mesma razão que havia deixado aquela minha frase dentro do livro de Nooteboom, ‘Dia de Finados’. Tal qual o personagem do livro, meu coração ficou apertado ao dar-me conta da fragilidade da vida.
Duas coisas me fizeram mais forte, ao reler os dizeres de dois livros do Nobel da Paz, Elie Wiesel. O primeiro, ‘Homenagem aos profetas’, em que ele cita: “Atenas tem seus filósofos, Delft seus oráculos, Roma seus senadores e Jerusalém seus profetas’. E o segundo foi um comentário da apresentadora norte-americana, Oprah Winfrey, “Arranco a minha coragem da  coragem dele”. Isto, a respeito de um outro livro de Wiesel, ‘Noite’, onde ele narra sua trágica experiência em campos de concentração. Como disse alguém um dia, um homem pequeno, miúdo, mas gigante quando abre a boca.
Reconheci que estava errado em relação a Elizabeth. Ao ver o Pitu acariciá-la, feliz da vida em revê-la, sem nunca se importar se havia ou não sido reconhecido, percebi o segredo de tudo. Pitú estava certo. Ele a conhecia e isto bastava. Teria que fazer o mesmo. Não importava se ela me reconhecesse ou não.  Cada visita era uma nova visita. Com isto, ela fugia da monotonia da casa de repouso, o que era importante para ajuda-la a seguir em frente com a vida.
Ao pensar em tudo isto, peguei o Pitu e fomos afoitos para a casa de repouso. Queria ver se Elizabeth ainda estava viva. Não tinha tempo a perder. Agora, minhas visitas seriam diferentes. Estaria ali por ela, sem me importar um instante se ela me reconhece ou não. Obrigado Pitú. Você, Elie Wiesel e Cees Nooteboom me deram uma lição. A minha visita era importante para Elizabeth, o resto não importava. Tomara que ela ainda esteja viva!  
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o Domtotal.

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