“Poucas vezes na história uma mudança tão pequena teve consequências tão espetaculares. Nunca uma mudança de palavra, a simples substituição de um significante (“irmão”) por outro (“pai”) teve efeitos tão profunda e duradouramente revolucionários. Este é o lugar em que nos encontramos em meados desta década. Restam, naturalmente, aqui ou acolá, antissemitas católicos. Mas eles estão em minoria. Eles travam uma batalha de retaguarda.”
A reflexão é de Bernard-Henri Lévy, escritor e filósofo.
Eis o artigo:
Esta é a segunda vez que eu tenho a honra de encontrar um Papa. A primeira vez foi há 20 anos, no auge dos bombardeios de Sarajevo. Tratava-se de João Paulo II e eu levei até ele, desesperado, o presidente muçulmano da Bósnia-Herzegovina, Alija Izetbegovic, porque eu não podia mais suportar a omissão das grandes potências.
E a segunda vez foi o Papa Francisco, hoje, 9 de dezembro de 2015, às vésperas da celebração, na sede das Nações Unidas em Nova York, do 50º aniversário da Declaração Nostra Aetate, por iniciativa do Vaticano e das grandes organizações judaicas americanas. Como todos sabem, a Declaração Nostra Aetate marcou o começo do fim do antissemitismo católico.
Eu discorro sobre as minhas impressões com os dois pontífices. Eu discorro sobre a curiosa e comovente associação que eles têm em comum, de graça e de poder, de espiritualidade visível e de força misteriosa, de santidade quase palpável e de encarnação em um corpo igualmente presente e massivo.
E eu discorro também sobre a grande estranheza, nos dois casos, desse frente a frente entre o Soberano Pontífice da Igreja apostólica romana e um judeu de afirmação acompanhado, lá, de um muçulmano piedoso e, aqui de dois judeus ortodoxos, o grande rabino David Rosen e o representante da IJCIC, David Landau, que vieram para apresentar uma folha com selos inéditos que comemoram alguns dos momentos marcantes, expostos em 50 anos, dessa reaproximação entre judeus e católicos.
Porque o essencial é, justamente, esta aproximação.
O verdadeiro acontecimento é esta reconciliação entre judeus e católicos que esteve no centro, pois, do simpósio comemorativo de Nova York e sobre o qual nós fomos, após o encontro com Francisco, conversar com o cardeal Pietro Parolin, seu número dois, secretário de Estado do Vaticano. Houve um tempo em que o antissemitismo era cristão.
Ele era mundialmente cristão e católico com todos os insultos repetidos, em todas as igrejas do mundo, sobre o tema do povo deicida e da antiga aliança “revogada” e condenada a “definhar”.
E então veio esta famosa Declaração Nostra Aetate desejada por um outro santo homem, João XXIII, e cujo único desafio foi provocar uma pequena, minúscula, mas decisiva mudança semântica que, de um só golpe, vai mudar tudo.
Até agora, os melhores católicos, aqueles que pensavam fugir daquilo que o grande historiador francês do antissemitismo, Jules Isaac, chamava de ensinamento do desdém, diziam: “os judeus são os nossos pais na fé; nós devemos respeitá-los como todos os filhos devem respeitar os seus pais”; exceto que não escapava a ninguém que a esses pais acontecia o mesmo que aos outros – estavam condenados a envelhecer, morrer e, um dia, deixar a cena para legar sua herança aos seus filhos cristãos.
A partir da Nostra Aestate, o discurso mudou: “os judeus não são os nossos pais, mas os nossos irmãos; nós devemos a eles respeito e amizade como convém entre irmãos”; pode haver, certamente, maus irmãos; os judeus, melhor do que ninguém, sabem que os irmãos podem se chamar Caim e Abel, Esaú e Jacó e que sempre está à espreita o espectro da guerra entre irmãos; exceto que esta guerra não é mais fatal e que, sendo os irmãos contemporâneos, não está escrito que um deve morrer para deixar o lugar para o outro – e este é o fim, portanto, desta matriz viva do antissemitismo que tinha sido durante muito tempo a “teologia da substituição”.
Poucas vezes na história uma mudança tão pequena teve consequências tão espetaculares. Nunca uma mudança de palavra, a simples substituição de um significante (“irmão”) por outro (“pai”) teve efeitos tão profunda e duradouramente revolucionários. Este é o lugar em que nos encontramos em meados desta década. Restam, naturalmente, aqui ou acolá, antissemitas católicos. Mas eles estão em minoria. Eles travam uma batalha de retaguarda.
E os fiéis da Igreja tornaram-se, essencialmente, aliados dos judeus em sua guerra de longa duração contra o antissemitismo certamente, mas também e, sobretudo, pela reparação do mundo e sua dimensão universal. Foi o que eu disse, na quarta-feira, 16 de dezembro, nas Nações Unidas, em Nova York, em companhia de eminentes personalidades vindas do mundo judaico e cristão. Foi o que eu disse, mas de outra maneira, em um mundo mais filosófico e desenvolvendo os fundamentos metafísicos do que chamo indiferentemente de “gênio do judaísmo” ou de “glória dos judeus”, no dia seguinte, 17 de dezembro, diante do público da “92nd St Y”.
Poucas mensagens contam tanto, para mim, quanto aquela. E poucas são tão ricas de efeitos concretos na atual conjuntura ideológica. Porque esta aliança, em primeiro lugar, participa da nova força das comunidades judaicas no mundo. Mas também porque é um modelo, uma espécie de paradigma, e podemos sonhar em estender esse paradigma para outras situações e disputas – a começar, naturalmente, pela não menos antiga disputa com os muçulmanos que são, também eles, nossos irmãos na fé.
Com eles, nossos irmãos muçulmanos, nós temos uma escolha. Ou a ignomínia de Donald Trump e outras Marine Le Pen que transformam todos eles em potenciais jihadistas. Ou então uma Nostra Aetate a três vozes, que ainda precisa ser escrita, mas da qual todos nós já conhecemos o protótipo – e avançou.
Huffington Post, 16-12-2015.
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