terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Ode ao momento presente

O primeiro que tentei foi pegar a maçaneta da porta para fechá-la de novo.
Por Lev Chaim*
A chuva veio forte e bem mais cedo do que esperava. Meu cão Pitú e eu só tivemos tempo de nos escondermos no portal de uma casa, rente à porta de entrada. Mesmo assim, meus pés e especialmente o Pitu já estávamos bastante molhados. Encostei-me mais à porta e, para meu espanto, ela se abriu toda e ainda fez aquele barulhinho das portas de filme de terror: nhiiiiiiiian.....
O primeiro que tentei foi pegar a maçaneta da porta para fechá-la de novo. Mas no que olhei para dentro, vi uma tremenda bagunça, com livros espalhados por todos os lados, inclusive no chão. Nunca havia visto uma coisa assim. Com certeza, deve ter sido arrombada e o ladrão não era nada intelectual, queria ‘grana’. Decidi bater à porta da vizinha ao lado e informá-la do ocorrido.
A mulher atendeu-me com a cara jovial e saudou-me com um sonoro bom dia. No que eu contei o que havia ocorrido ali ao lado, ela deu um belo sorriso e disse que não era para me preocupar. Ela era a dona da casa ao lado; havia saído para aguar as plantas da vizinha e deixado a porta encostada. Aí, respirei mais aliviado e ela acrescentou: “Não estranhe a bagunça da minha casa; sou editora e a minha profissão é ler livros”.
Sem pensar duas vezes, ela trancou a casa da vizinha e convidou-me para esperar a chuva passar em sua casa. Quando chegamos à sala, ai sim, a minha boca ‘caiu’. Havia livros por todos os lugares imagináveis, empilhados em grupos de cinco ou seis. Ao perceber o meu espanto, ela falou: “Os que estão no chão já foram lidos, os que estão na mesa vão ser relidos”.
Só na cozinha havia espaço para se sentar sem estar rodeado de livros. Ela ofereceu-me um café e deu uma tigela com água para o Pitú. “Sabe, pelo seu sotaque, percebo que você não é daqui. Inglês, talvez?” Não – disse eu. “Francês?” Não! Como ela não adivinhava, acabei dizendo: Brasileiro. Ai ela  esvaiu-se pela porta da sala e voltou em seguida com um livro nas mãos.
Para a minha surpresa, eu tinha aquele livro. Era uma tradução de poemas de Carlos Drummond de Andrade para o Holandês, com os poemas à direita da página em holandês e à esquerda, a versão original, em português. A tradução era do talentoso e falecido August Willemsen, que eu havia conhecido anos atrás. “São lindos, não?”. Sem esperar resposta, ela continuou: “Estava intrigada com um poema deste grande poeta....este aqui”. Ao bater o olho, eu o citei de cabeça, como me lembrava da época em que o havia lido:
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro. 
Estou preso à vida e olho meus companheiros. 
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças. 
Entre eles, considero a enorme realidade. 
O presente é tão grande, não nos afastemos.
 Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”.
Foi ai que ela contou-me que estava também ocupada com uma tese sobre Drummond para a Universidade de Utrecht. Ela disse que por este poema notava-se que Carlos Drummond de Andrade também era um fã do filósofo Nietzsche. O que ele disse em seus versos é o que o filósofo mencionou várias vezes: “Não deixe os mortos enterrarem os vivos. Muitas vezes, a  percepção histórica não preserva a vida, mas a mumifica”.
Quando percebeu que eu estava ‘boiando’, ela acrescentou: “Nietzsche era a favor da vida, aqui agora, como Drummond neste poema. Do contrário, tornamo-nos colecionadores de coisas que ocorreram, que um dia foram criadas e não damos impulso a novas criações”. Após uma rápida pausa, ela continuou: “Aprender com o passado sim, mas não deixar que este mesmo passado paralise o atual processo de criação”.  
Ai sim, tudo caiu no eixo e percebi o que ela estava querendo dizer. Confesso que nunca havia visto aqueles versos de Drummond comparados com o filósofo Nietzsche, mas, agora, tudo fazia sentido. Afaguei o Pitú e disse em voz alta: tão longe de casa e tão perto. Foi a maior surpresa deste dia de chuva. Há poucos metros da minha casa, uma holandesa, editora de livros, ocupada com uma tese sobre Drummond e Nietzsche. A vida tornou-se bela de novo.
*Lev Chaim é jornalista, colunista, publicista da FalaBrasil e trabalhou mais de 20 anos para a Radio Internacional da Holanda, país onde mora até hoje. Ele escreve todas as terças-feiras para o DomTotal.

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